Hoje ainda estava me lembrando dos dizeres de minha avó. Adoro ditados populares e bordões. Cresci ouvindo vários. Minha avó era mineira de Santana, um distrito de Patos de Minas. A prosódia mineira, seu vocabulário e sotaque eram deliciosos de ouvir. Além disso, minha avó era criativa no falar. Por meio de seus bordões é que entendíamos como estava seu humor, para nos aproximarmos ou não, para pedirmos ou não as coisas. Aprendi vários com ela. Mas essa história não é sobre isso. É sobre o que um desses ditados me trouxe, uma certa feita.
Eu trabalhava na Secretaria da Educação. Consegui ocupar uma vaga, mesmo sendo professor, numa área técnico-admnistrativa. Nessa época, essas trocas de função eram possíveis e procuravam alguém que tivesse um determinado perfil para trabalhar com uma ampla ação de formação de professores. Eu passava horas ao computador. Era algo muito diferente do que eu sempre fazia, pois era professor, trabalhava com Ensino Fundamental. Estava habituado a uma rotina pesada de horas de trabalho em sala de aula e todas as atividades extras que isso impunha: correções, planejamentos, estudos, preenchimento de diários e relatórios.
Foi uma oportunidade única de ter tempo extra para me dedicar aos estudos e tudo ia muito bem. Mas ambientes corporativos são horríveis, na minha opinião. Eu prefiro mil vezes a sala de aula e seus desafios, por piores que possam parecer. Talvez porque no ambiente corporativo o trabalhador esteja sob supervisão constante. Quando não são seus chefes questionando suas ações, muitas vezes são colegas que se ocupam de falar com você e, posteriormente, de você. Eu sempre me esmerei por ter boas relações com os colegas. E sempre gostei de manter, mesmo sob o decoro do ambiente de trabalho, uma comunicação alegre e fluida. Por isso me sentia à vontade para ser eu mesmo e me comunicar de maneira espontânea.
Num desses dias em que eu achava que estava sendo agradável, eu recebi uma abordagem diferente da minha colega de mesa. Seu nome era Márcia. Obviamente é só o que eu falarei aqui. Era um dia comum e ela veio me falar cheia de dedos, no meio de uma pilha de processos que ela analisava. Márcia era meio especialista nisso. Tinha muita experiência com burocracia. Enquanto ela passava os olhos nas pastas e digitava freneticamente, percebi que ela se inquietara com algo. Parou o que estava fazendo, com os óculos na ponta do nariz, ela me olhou bem seriamente, obrigando-me a olhá-la de volta, e disse: “Preciso falar algo com você, mas não sei se devo…”. Isso é a pior coisa que existe. Claro que ela deveria falar, uma vez que, depois de ouvir isso, eu fiquei muito curioso.
Eu já havia passado recentemente por um episódio pavoroso, um pesadelo, envolvendo fofoca no ambiente de trabalho. Acho que nunca sofri tanto assédio moral em tão pouco tempo na minha vida por causa de comentários indevidos e dois chefes relapsos e maldosos. Então, quando Márcia me olhou daquele jeito, eu revivi o momento de semanas atrás e passei mal, literalmente. Retruquei depois de uns minutos que desejava ouvir o que ela tinha a dizer. Relatei brevemente o que eu havia passado naquele lugar e disse que não queria, de modo algum, experienciar aquilo novamente. Márcia balançava a cabeça e afirmava: “Não é nada disso, é outra coisa, para falar a verdade, não tem nada a ver”. Diante da minha angústia, Márcia não teve escolha. Resolveu dizer o que a incomodava também.
Havia dias que ela “orava” por mim, diariamente, ao se levantar, pela manhã. Evangélica, Márcia tinha o hábito de orar antes de começar o dia, ainda em jejum. Sempre colocava os colegas de trabalho em suas intenções. Um dia daqueles, ela teve uma “revelação”. Deus havia dito a ela que não se agradava de coisas que eu dizia no trabalho. E que coisas eram essas? Ela não soube dizer. Pediu que eu pensasse mais antes de falar. Eu sou uma pessoa espontânea. Nunca fui tímido. Posso ser calado ou reservado, mas isso é uma exceção no meu comportamento. Eu prefiro falar e por isso falo muito.
Aquilo me deixou mal, a princípio eu entendi como uma crítica nao ao “que” eu falava. Mas ao quanto. Pedi desculpas por falar demais e passei a fazer silêncio. Percebendo meu desconforto, ela retomou o assunto e disse que iria se lembrar do que Deus havia revelado a ela. Disse também que tinha pensado bem para falar, mas que, por ter hesitado antes, acabou se esquecendo de um detalhe. Deus havia dito, isso mesmo leitor, Deus. Ele mesmo. Deus havia dito que uma frase que eu repito muito era danosa, problemática. Eu estava diariamente me amaldiçoando. Por acaso, ela havia esquecido a frase que eu repetia, mas ela iria orar novamente a Deus para que ela soubesse exatamente o que eu não deveria dizer.
Eu não deveria dizer.
A princípio eu tinha zero vontade de obedecer àquele deus de Márcia. E não estava entendendo aquilo como uma tarefa espiritual. Mas, naquela altura do campeonato, eu já estava inseguro e preocupado com o que eu dizia no meu ambiente de trabalho. Talvez algo que eu verbalizava ofendia seriamente a ela. Ou então atrapalhava a sua concentração. haja vista que ela desempenhava um trabalho bem complicado eu, certamente, a desconcentrava com meu falatório. Pensei também na sua formação religiosa, e comecei a tentar rememorar as minhas conversas, se eu estava sendo irrevente demais, se eu era blasfemo, ofensivo. Mas não cheguei a nenhuma conclusão.
Mas essas dúvidas durariam pouco. Na mesma semana, uns dois dias depois, eu já estava mais relaxado e conversava normalmente com outros colegas. Respondendo a uma pergunta dela, de modo bem humorado, eu soltei um dos bordões de minha avó paterna: “Me mata com a faca da cozinha!” E comecei a rir de algo tolo ali do trabalho, perplexo com algo. Sempre repetia esse bordão quando queria expressar surpresa, indignação. Uma frase muito específica do mineirês. Então ela me surpreendeu: “É isso! Isso o que você fala que é errado! Deus não se agrada disso e mandou me dizer que você está se amaldiçoando com essa coisa que você fala. Que está atraindo morte para a sua vida”.
Eu fiquei embasbacado por um tempo, olhando a cara dela me dando uma espécie de aula, exortação e pregação de uma teologia estranha, por meio da qual ela queria me silenciar e, ao mesmo tempo, doutrinar-me, orientar-me espiritualmente. Confesso que fiquei pelo menos por uns trinta minutos explicando de maneira polida, mas não menos indignada, o quanto aquilo me ofendeu. Eu me senti silenciado, reprovado, policiado. Por fim, eu percebi que estava sendo enganado por uma pessoa que usava um pensamento religioso de maneira falsa para tentar abrir em minha vida uma brecha. E depois disso ela, que havia conseguido uma vez me orientar no que dizer ou não dizer, certamente se marcaria como uma influência na minha vida.
Primeiro ela disse que orava por mim, ou seja, me prestava um serviço religioso que eu não pedi. Algo em que eu não creio. Depois, ela disse que o deus particular dela havia revelado que eu era maldito por minha própria ação de dizer coisas malditas. Depois, quando teve a oportunidade de um flagrante, veio me taxar de maneira categórica como pecador. Pedia a ela que jamais repetisse isso de novo comigo, eu não estava disposto a ouvir pregação religiosa de quem quer que fosse, de qualquer religião que me taxasse de maltido por usar uma expressão coloquial que fazia parte do repertório de minha avó.
Falar o que eu ouvia de minhas avós, tios e tias, tanto do lato materno quanto do paterno, me fazia me sentir bem. Era parte de minha identidade. Fazia-me relembrar confortavelmente de minha infância e de momentos felizes. Dizer “me mata com a faca da cozinha” era algo humorístico. Era uma hipérbole, um exagero. Não siginficava que eu exatamente quisesse morrer de maneira tão esdrúxula. Nem mesmo que eu quisesse morrer. Era apenas uma forma de expressar indignação. Sempre me lembrava eu pequeno, vendo minha avó apertada em seus afazeres domésticos, reclamando, praguejando por causa de panelas, pratos, prazos e bocas que esperavam para comer. E eram muitas. Dinâmica e despachada, como toda boa dona de casa, minha avó não descansava nunca e todas as suas reclamações e humores eram justificados pelas urgências de sua existência. Rainha de seu espaço, ela dizia o que queria, ninguém poderia amaldiçoá-la.
Eu senti isso. Senti que Márcia amaldiçoava minha avó, viva àquela época, morando a mais de duzentos quilômetros de nós, naquele momento. Senti-me pior ainda porque eu me senti desrespeitado. Vilipendiado. Maldito. Terminando aquela conversa, procurei meu superior e relatei o que havia acontecido. Não pedi nenhuma providência, mas pedi para que ele ficasse ciente daquilo. Sabíamos o quanto Márcia era uma funcionária importante. Sabíamos também o quanto ela era uma boa pessoa, para além daquilo. A convivência com ela, com exceção daquele episódio, era sempre a melhor possível.
Ele acolheu minhas palavras e me deu razão, especialmente porque eu não quis que ele fizesse algo ou não exigi nenhum direito subjetivo. Mas daquele dia em diante, eu me senti muito mal naquele ambiente. Eu tinha vinte e nove, trinta anos, no máximo. Era uma juventude já amadurecida. Eu, de fato, me senti amaldiçoado. Maldito. Reprovado por uma pessoa que eu pensava ser próxima, por causa de mim mesmo, do todo que eu era e representava. Eu tinha certeza de que a expressão coloquial de minha avó não era o problema. Mas minha pessoa, meu jeito de ser. Certamente o quanto eu me expunha, as coisas que eu dizia eram ouvidas e compreendidas como um problema que necessitava de intervenção espiritual.
Isso é deprimente, é massacrante. É horrível quando a crença do outro invade a vida da gente, sem pedir licença para entrar, sem oferecer nada em troca. Mas é verdade.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Capa: Imagem de 愚木混株 Cdd20 por Pixabay