Sob estado de constante pressão

Ser gay é viver sob constante pressão. Assim eu me senti desde que eu era criança. Eu nem sabia ainda que eu era gay e já sofria a pressão da masculinidade. Por motivos de criação, eu era extremamente pacífico e dócil. Mas aprendi isso em casa, com meus pais. Minha mãe me educava para falar corretamente, pedir, solicitar, falar “por favor” e obrigado. Em casa, dávamos valor à educação. Tentávamos ser polidos, conversar corretamente, ter bons modos. Claro, sem parecermos artificiais demais. Nossa educação era elogiadíssima.

O que eu não imaginava, no entanto, é que esses valores, infelizmente, configuravam-se como uma forma de resistência e subversão. Porque éramos extremamente pobres. Gente pobre e educada, é naturalmente subversiva. E isso já me tornou gay: pobre, quase miserável, educado demais: é gay. Eu era educado. E de tanto ouvir isso, eu passei a prestar a atenção em mim mesmo. O que me faltava? Masculinidade? Isso me fazia sentir mais vulnerável. Um alvo de piadas, brincadeiras sem-graça e muito bullying. Não foi exatamente a infância mais fácil de todas.

Com a chegada da puberdade, a infância foi dando lugar à adolescência e suas cobranças: havia a necessidade constante de mostrar qualquer tipo de produtividade no campo emocional e sentimental: ter amigos, dar o primeiro beijo, ficar com alguém, namorar até. Restou-me tentar me isolar dos meus colegas, esconder-me na religião, ofuscar qualquer coisa nesse campo pelo tempo que fosse possível. Mas era uma pressão tremenda. Há todo um capítulo à parte, na minha vida, em que o surgimento de um transtorno emocional — a bipolaridade, aos 14 anos — traz mais pressão e problemas à minha vida. O meu adoecimento mental produz mais tensão. Primeiro, degenera minha convivência com os meus colegas de igreja e escola. Depois, com a minha família. Então eu passo a perder a sanidade e a certeza a respeito de minhas decisões e pensamentos mais íntimos. Tratar a saúde mental melhorou minha saúde como um todo. Mas não foi o suficiente para diminuir o incômodo criado pela tensão da sexualidade dissimulada.

Ao longo de muitos anos isso foi muito pesado para mim. Depois que eu pude tratar a bipolaridade e viver uma remissão muito próxima à cura, foi muito difícil manter-me coerente. Isso piorou mais ainda quando eu consegui me tornar professor. Dar aulas tornou-me uma pessoa pública, cuja vida era observada por mil olhos todo dia. As pessoas faziam perguntas, queriam saber. E quanto mais eu me punha dentro de uma casca de discrição, menos óbvia era a minha masculinidade, mais fora do padrão ela ficava. Isso tornava inútil o esforço em dissimular o óbvio. Eu queria muito ser um professor transparente, um humano transparente, um consumidor transparente. Queria que vissem a minha função, através de mim, queria muito que as pessoas me esquecessem e deixassem a minha vida em paz.

As coisas só melhoraram porque pioraram primeiro. Meus primeiros anos como professor foram marcados por alguns episódios de preconceito e perseguição. Eu decidi, após isso, que deveria me valorizar e conhecer-me melhor. Embora eu não me assumisse para a minha família, eu passei a não esconder mais isso, a começar por mim mesmo. E passei a ser um pouco mais feliz, quando resolvi mudar de cidade e assumir quem eu era. Passei a namorar, tive um longo e conturbado relacionamento que me deu muita experiência de vida. Estou há seis anos solteiro, desde o fim desse relacionamento e, para falar a verdade, a pressão insiste em continuar em muitos aspectos.

O preconceito nunca cessou. Ainda vivo em espaços em que eu preciso impor respeito contra agressões gratuitas, muitas vezes diretas, contra mim e minha orientação sexual. A pressão também vem do fogo amigo. O mundo gay pressiona. O etarismo pressiona. Os problemas de saúde pressionam. Recentemente, o adoecimento por obesidade e diabetes me fizeram tomar uma decisão de emagrecer por uma cirurgia. A pressão em torno do procedimento em si, as opiniões contra e a favor foram muitas. Apesar de bem-sucedida, a saúde continua precisando de manutenção. Há uma pressão estética fortíssima sobre meu corpo. Emagrecer traz consequências estéticas e toda uma série de preocupações.

A principal delas, certamente, é a adoção de um estilo de vida que eu não tinha antes, que não me interessava. Para poder me entender e mudar meus gostos, para eu poder me aceitar como eu era e aprender a gostar de mim como eu iria ficar, eu tive de enfrentar terapia, retomar o antigo projeto de saúde mental que me levou, há vinte anos, à remissão da bipolaridade. Ainda é uma grande pressão: manter a remissão do transtorno mental, manter a remissão do diabetes. Precisei deixar de ser sedentário, precisei adquirir novos hábitos e, recentemente, senti-me pressionado a resolver outros problemas, de origem financeira e relacionados à minha carreira no magistério.

Enfim, isso é ser adulto, alguns diriam. E poderia ser pior. Claro. Se eu fosse mulher, negra, por exemplo. Seria muito pior. No entanto, constatar a desgraça alheia não alivia um grama sequer no peso que eu sinto. Talvez por isso eu tenha, às vezes, sucumbido à desesperança ou aos ímpetos de abandono das coisas. No entanto, também me sinto pressionado a não fugir e enfrentar a dureza de ser quem eu sou, nesse momento.

Uma das piores pressões vem da proximidade dos cinquenta, sessenta, setenta anos. O mundo é muito cruel com pessoas LGBTQIA+ que entram na idade avançada, nas sociedades capitalistas que conhecemos. Há uma pressão em “aproveitar a vida”: consumir, ser, ter. Há a pressão estética. Envelhecer bem não é sinônimo, exatamente, de saúde. Envelhece bem quem tem aparência de jovialidade, mesmo sob cabelos brancos, mesmo com uma cabeça calva. As redes sociais enchem o feed dos homens de quarenta anos com publicidade (enganosa, até) sobre o que é envelhecer com qualidade e saúde. Homens idosos de corpo musculoso, magro, trincado inundam telas. Suplementos, remédios para a impotência sexual, cremes faciais, sabonetes, xampus. Chega a irritar aquele tanto de produtos na paleta de cores azul-marinho, cinza ou preta. Tudo o que é para homem consumir não pode ter cores vibrantes mas tem o mesmo discurso pseudocientífico dos produtos de Elizabeth Arden e Helena Rubinstein: aumentam, fazem crescer, restauram, renovam a partir de profundas camadas… Mas no fundo só vendem ilusões de ótica ou acalmam superficialmente a consciência.

É perturbadora a pressão sobre qualquer pessoa para consumir. Um exemplo aberrante disso: nós, trabalhadores, somos pressionados a consumir para trabalhar melhor. Investimos em nossas carreiras, estudamos, gastando tempo livre para isso, enquanto, na verdade, fazemo-lo para outros, e não para nós mesmos, ainda que queiramos acreditar no contrário. Produtivo é o trabalhador que se sacrifica, que deixa de ter prazer para ganhar mais e acaba entrando num caminho sem volta de “autoescravidão”.

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Somos pressionados a todo momento por nossos pares: amizades, cônjuges, colegas de trabalho. Somos pressionados a ter saúde mental em dia, saúde física em dia, mas aparentando beleza física, acima de tudo. E somos pressionados pela normalidade. Mesmo quando somos diferentes, excepcionais, mesmo quando não somos exatamente os cidadãos padronizados. À medida em que entramos na esfera do consumo, na roda viva de tudo isso, somos constrangidos a mudar nosso modo de ser. Isso, infelizmente, também é uma forma, muitas vezes cruel, de pressão sobre corpos e mentes.

O triste é que toda essa pressão, no fundo, serve para disponibilizar nossos corpos para o trabalho, também mitigar a nossa força política. Estamos preocupados demais para pensar no poder que temos para pressionar a sociedade para fazer mudanças boas para todos. Nós temos que trabalhar até a exaustão. Quando qualquer tempo nos sobra, temos que nos preocupar em ficarmos bonitos, em não envelhecer, em aparentar saúde. Precisamos ser alegres, descolados, cheios de amigos, ter posses, mas saber valorizar o essencial. Precisamos viajar, mas também precisamos economizar, poupar, investir. Precisamos demais.

Ou precisam que precisemos disso, para que consumamos. Precisamos discutir política, mas não podemos ser pedantes, não podemos mudar o mundo demais, senão ele deixa de fazer sentido, fica triste. Precisamos estar conectados, mas em coisas inúteis, porque se a gente acordar demais para a realidade, a vida fica triste… Comecei esse texto dizendo que ser gay é viver em estado de constante pressão. Mas eu termino dizendo que ser humano no mundo atual é viver em estado de constante pressão. Alguns a sentem mais, outros menos, mas todos são pressionados absurdamente.

Enfim, o problema não está em nós. Nem no eu. Quero dizer com isso que o problema não está nas pessoas, isoladamente. O problema está no fato de que vivemos numa sociedade capitalista que, se encarada de frente, vai nos fazer entristecer pela pobreza e desgraça que ela produz. E nós precisamos nos distrair disso. Enquanto estamos preocupados com a carne que envelhece, com a feiura que aparece, enquanto procuramos nos divertir e nos alienar, os problemas do mundo não se resolvem. E isso enriquece os ricos. Empobrece os pobres e pouco queremos fazer para mudar porque, afinal de contas, quem quer viver num mundo bonito?

Todo mundo quer o contrário: viver bonito no mundo. Ainda que esse mundo esteja caindo aos pedaços.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Capa: Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

 

Respostas de 2

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *