Quando eu era pequeno, minha tia me deu uma Bíblia. Não era a primeira que eu tivera em mãos, havia uma de minha mãe, mais antiga, que tinha sido de minha tia Elenice. A escrita miúda, em letras difíceis e com palavras distantes da minha realidade me fazia entender pouco, mesmo quando eu lia muito. Na minha escola, iam uns homes, os Gideões Internacionais, distribuindo versões pequenas dos Novos Testamentos, em letras tão pequenas que dava até cansaço de ficar com aquelas poucas gramas de livro nas mãos. Mas eu lia algumas coisas. Principalmente as partes que eu ouvia na missa, nas leituras, aos domingos. Ou então partes mais conhecidas. A Biblia sempre foi um objetivo de vida para mim: lê-la toda, algo que eu consegui fazer aos dezessete anos, de maneira completa, em menos de um ano, lendo-a preguiçosamente, anotando coisas, grifando folhas, circulando termos e outras coisas afins.
Quando eu ainda era criança, eu li o Apocalipse. Ninguém se importava de ver um menino com uma Bíblia na mão, então pouco importava onde estava aberta, a “bênção” seria a mesma. A minha primeira leitura desse livro profético e escatológico foi numa dessas muitas versões gratuitas do Novo Testamento entregues aqui em casa. Uma delas, em brochura, de tamanho mais fácil de ler, ficava sobre os móveis da casa, para lá e para cá. Eu li, dessa forma o Apocalipse. A narrativa mítica, mística e profunda, que começava como que num sonho de João e passava a eventos catastróficos, visões dignas daquelas do Profeta Ezequiel e, por fim, termina com o fim e o reinício de tudo. É uma história muito forte, cheia de imagens que se fixam no nosso imaginário, talvez por terem sempre sido parte de um imaginário coletivo. Ou como queria o psiquiatra e psicanalista Carl Jung (1875-1961): as imagens do apocalipse fazem parte do inconsciente coletivo.
Depois disso, cresci e amadureci essas leituras. Abandonei há muito tempo a igreja e suas interpretações, muitas delas estapafúrdias e alarmantes. Ouvi, com certo receio, teorias e meias-verdades sobre fins de mundo, mortes e tragédias, arrebatamentos e castigos. Vulcões explodindo, asteroides caindo no mar, fazendo a água ferver, anjos e demônios surgindo pelo ar e terra. A tragédia anunciada haveria de acontecer, num futuro distante, com morte para os infiéis e glória para o Cristo! No entanto, nem tudo acontece como diz a profecia.
As tragédias, de fato, vieram, mas em outras formas. De outros modos. Em vez do fogo dos céus, o fogo nas florestas. As ondas devastadoras do mar revolto, depois da queda de uma estrela, na verdade se revelaram como as inundações de chuvas torrenciais assolando as zonas urbanas e rurais. A ação antrópica é o grande apocalipse da humanidade. Na verdade, apocalipse significa revelação. Sua associação com a tragédia, na verdade, é uma metonímia que leva a uma incompreensão da palavra em si. A ação antrópica é o que o apocalipse revela aos nossos olhos. O mexe-mexe do ser humano no Planeta Terra criou um estado de tragédia constante. A todo ano, a destruição muda de lugar. A seca catastrófica e as queimadas no Pantanal, lugar de muitas águas, foram sucedidas por chuvas torrenciais destruindo regiões ribeirinhas e áreas de encostas. Depois disso, o mar de águas dos rios amazônicos secam, na sequência, as águas que faltaram nos rios amazônicos desabaram sobre o Rio Grande do Sul e continuam a destruir um estado inteiro, como se fosse uma tragédia bíblica, anunciada por sete trombetas, sete selos e quatro anjos exterminadores.
De fato, tragédias sempre acompanhram o homem e sua existência. A pensar como Jung, não é difícil de se imaginar o que os povos antigos viveram para ter na sua in/consciência coletiva as imagens escritas e descritas por João no Apocalipse. Erupções vulcânicas, incêndios florestais, secas extremas, inundações, terremotos. O arsenal natural já é repleto de tragédias possíveis. Por isso, a natureza, somada à ação antrópica, pode criar desastres ainda mais potentes: secas, inundações, queimadas ainda mais desastrosas. Talvez, num vislumbre de sabedoria, João tenha entendido profeticamente esse futuro de natureza revolta com o ser humano.
Nisso, talvez haja o maior acerto do texto bíblico: o futuro é desastroso! As múltipas condenações: trombetas, selos, bestas, estrelas, anjos: tudo são símbolos para as ações do homem sobre a natureza, a antropia. De maneira desastrosa, o homem destrói tudo no seu caminho, fazendo com que inocentes de um futuro incerto sejam vítimas de tanta tragédia. No entanto, não devemos usar isso com fins de justificar o fim trágico, como fazem os religiosos de má fé, não os de bom espírito. Unamo-nos em prol da vida, a lutar contra as bestas apocalípticas da ganância, miséria e outros desastres humanos.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos