Crônica para dias de calor

Num dia de derreter o quengo, calor de trinta e sete graus à sombra, Goianésia parece uma sucursal do inferno. Goianésia é uma próspera cidade do interior goiano. Claro que você não é obrigado a saber de tudo, leitor. Estamos no paralelo quinze, um clima tropical tórrido, continental. A secura e o calor são em algumas épocas do ano, e sempre experienciamos isso durante o fim do inverno. Durante o pôr do sol, um filtro vermelho de poeira e fumaça de queimadas deixa o início da noite em chamas.

Pôr do sol em Goianésia, foto do autor.

Agosto, o mês de cachorro louco é seco, ventoso. Ficamos dois, três meses sem chuva significativa em grandes áreas do Estado, com algumas raras exceções. Dificilmente massas do norte ou sul trazem o frescor de uma ou outra nuvem de chuva gotejando esperança em árvores tortas do cerrado. De fato, precisamos desse choque, dessa crise hídrica na vegetação. É ela que nos traz as cores, formas, texturas e sabores do Cerrado. A beleza de nossas flores precisa da seca.

Quem não precisa sou eu, passo o inferno do inverno todo invejando o Sudeste e o Norte, chuvosos, o litoral nordestino com sua estação trocada. Pena que as chuvas andam destemperadas ultimamente, meio raivosas, mostrando a que vieram e vêm para homens que insistem em aquecer o Planeta Azul. Eu fico preocupado com as primeiras chuvas. Aqui temos chuvas fortes, torrenciais, uma umidade equatorial, mesmo que no dia anterior, houvesse uma seca aberrante. É um clima de extremos.

Aqui em Goiás, quem é fraco morre. Como aguentar quarenta e dois graus em Porangatu, ainda tecnicamente no inverno? E quem precisa sair de lugares mais amenos? E o nível de umidade durante os meses mais secos, verdadeiros atentados à vida?

O que é mais difícil, no entanto, é começar o dia com quinze graus e enfrentar trinta no meio da tarde. É difícil aguentar o calor do sol direto, sem nuvens, morrer fulminado por uma rajada solar que atravessa o azul do céu direto na superfície da crosta terreste. As plantas têm de ser fortes, as pessoas têm de ser pretas, há que se beber muita água.

Nascer do sol no município de Santa Isabel, Goiás. Centro Goiano. Inverno de 2022.

Já viu o azul do céu no Planalto Central, numa manhã de inverno? Zero nuvem, um tom cerúleo que marca a retina, a gente não vê de novo por aí. No meio do céu uma estrela branca, com raios parece querer calcinar-nos, fundir-nos a pedras, solo e vegetação. As temperaturas sempre altas. Mínimas de nove, dez graus no inverno em raríssimos dias. O tronco das árvores seca, racha, cicatriza. As plantas dormem. O vento seco espalha o calor desestimulando qualquer crescimento.

Do nada: flores. Amarelas, vermelhas, roxas, rosadas, lilases, purpúreas, brancas. Insetos surgem, sobreviventes ao veneno do agronegócio. A sujeira, as folhas secas ou encardidas, o mato amarelo. Pintam-se todos de flores, insetos zumbem. Logo sairão dali frutos e frutas. A maioria delas ácidas, doces, mas ácidas. Ou adstringentes, leitosas. Ou suaves, mas de polpa encerrada em camadas internas. Outras ainda pequenas, indigestas, perfumadas, de sabores fortes…

Paineira rosa, árvore da flora cerratense, também usada na arborização urbana.
Flor da paineira rosa, detalhe. Foto do autor.

Tempo de murici, cada um para si. A mutamba, maria preta, transformando cachaça em scotch ou licor amadeirado, o ingá aveludado, o aperto do araçá ainda verdolengo. E a cagaita? Mata, nutre? Cria, envia, mas não atura sete dias, dizia meu avô vendo a gente encher o bucho dos oleosos e escandalosamente saborosos cocos de gueiroba. O melhor doce do mundo é feito dele. O cheiro, o sabor, o jenipapo tresandando a eau de parfum, mesmo sendo uma massa molenga.

E o sol a pino? O cajuzinho vermelho, azedo, fica ótimo em passas e em sucos vendidos em garrafas pet recicladas, geladíssimo. Eu quero, mas como querer isso para sempre, se o cerrado sumir debaiso de plantations de soja ou cana-de-açúcar? Se for pisoteado por bois?

E o sol segue forte, 39 graus à sombra, segreda a mim o termômetro do meu carro, parado na garagem. Ando pela estrada, voltando para casa, olhando plantações, emas correndo no meio da plantação de cana, ouriços mortos na superfície de um asfalto quente. Quando virá a chuva? Como virá? Será boa, benéfica? Má?

Ipê rosa, florando no inverno goiano, ao fundo, o céu azul do cerrado. Foto do autor.

Que seja água, pelo menos. Enquanto isso, o sol faz chover raios de luz que atravessam o azul do céu e nos cresta, nos torra, nos grelha. Impossível não sentir. Quem é fraco morre. Clima equatorial no verão, desértico no inverno. Cadê o frio? Cadê? Frio é um benefício raro para quem vive no paralelo quinze.

 

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

Foto de capa do autor.

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