Forte o suficiente?

A letra da canção icônica de Cher, Strong Enough, lançada com seu álbum memorável “Believe”, de 1998, possui uma mensagem simples e coloquial a respeito da superação de um caso amoroso. A canção é faz parte de uma lista, a “25 pride anthems of all time”, porque é acessível, direta e bem articulada com esse sentimento de quem precisa de um suporte emocional para se declarar livre de alguém que tem qualquer tipo de comportamento abusivo, desde aqueles que são extremamente violentos até aqueles que podem ser socialmente tolerados e passar por simples atitudes corriqueiras do ato de amarje ser amado ou amada.

A canção nos mostra um momento da vida da pessoa em que as coisas já estão devidamente no seu lugar. Do fim de um relacionamento abusivo até o ponto em que alguém pode cantar esse hino, há um caminho a se percorrer. Talvez a coisa mais difícil desse processo todo seja se identificar como parte de um relacionamento abusivo, como vítima. Até porque é um papel que todos querem ter numa relação malfadada, mas nos atentemos a algo muito importante: a vítima é sempre quem sofre violência física e psicológica, é sempre aquela pessoa que passa por processos de alienação de si mesma e sofre abusos de vários tipos, incluindo nisso o abuso patrimonial. No caso da música, o eu-lírico (pessoa que fala por meio do poema) mostra que foi abandonada, substituída por outra pessoa, ou seja, foi alvo de desinteresse e possível traição, o que provocou o trauma a ser superado.

Tradicionalmente, os relacionamentos abusivos são simbolizados pela relação entre homem e mulher. Os tipos mais comuns de abuso físico e psicoloógico tipificados pelas leis modernas têm o relacionamento entre um homem e uma mulher como base. É o caso  do gaslighting, denominação para a alienação psicológica de um parceiro para outro, que tem por denominador o filme clássico de 1940, Gaslight. Esse exemplo é tão significativo que o nome do filme já virou verbo da língua inglesa, to gaslight significa distorcer. Leia mais sobre isso aqui. Veja o trailer do filme abaixo:

Apesar de ser o tipo mais pop de abuso psicológico, gaslighting não vem sozinho, pois pode levar a outros tantos tipos de abuso, inclusive esse é o principal dos muitos passos de um abusador que pretende tomar os bens de uma vitima, ou esconder dela práticas espúrias ou traições fora do combinado entre o casal.

De modo geral, os relacionamentos humanos são complicados. Mesmo as mais profundas relações familiares baseadas em amor, de fato, se apoiam em relações abusivas. É o exemplo do papel da mulher na maternidade, ligado intimamente à submissão ao marido, mesmo nos dias de hoje. Mas abusos podem também ocorrer em relações horizontais. Eles podem tem início quando duas pessoas do grupo LGBTQIA+ resolvem se relacionar. Isso pode acontecer quando essa paridade falha. Um exemplo claro: um dos membros da relação passa a depender momentânea ou permanentemente do outro. Ou ainda: o casal, ou constelação poliamorosa passa por crises relacionados ao interesse afetivo e sexual mútuo. Nem sempre as pessoas são educadas a se comunicarem. LGBTQIA+ aprendem em ambientes familiares, com exemplos nem sempre inclusivos, a lidar com as possiblidades de relacionamento da vida adulta e podem reproduzir comportamentos danosos ou abusivos que viram em casa, quando crianças.

Muitos de nós, ao sair do armário ou buscar a vida independente, tende a entender a relação como uma forma de suporte emocional e financeiro, seguindo o exemplo que viu com o pai e a mãe em casa. Outros tantos querem se libertar desse tipo de padrão familiar tóxico e exigente, que caracteriza a maioria dos casamentos monogâmicos, e produz regras próprias, mas se esquece de ou negligencia a necessidade  de se conversar sobre elas de maneira adequada com seu(s) cônjuge(s) ou seu(s) parceiro(s). A opção por afetividade líquida, relações momentâneas, relações sexuais de minutos também não satisfaz quando as necessidades emocionais são mais profundas. Como resposta ao custo emocional e até mesmo financeiro de múltiplos esforços para se ter sexo, afeição e diversão em grupo, as pessoas passam a contabilizar seus prejuízes de tempo, dinheiro e afeto quando pensam nas suas relações afetivas e até mesmo em suas amizades.

Nesse contexto de prejuízos e insatisfações que não são mais represados pelo medo de ficar sozinho (porque muitas vezes já se esta, mesmo no meio de uma relação longeva), é comum que pessoas optem por dois caminhos. O primeiro deles tornar-se ou manter-se sozinho, abraçando formas de consumo de afetividade nem sempre saudáveis, mas bem mais fáceis de administrar. O segundo caminho é o pior deles: sofrer com o comportamento alheiro ou fazer alguém sofrer com o seu.

A relação entre abusador e abusado é a codependência emocional. Rompê-la é um processo difícil, pois ela se caracteriza como um transtorno emocional criado a partir da patologia do outro, não exata ou somente do sujeito que é codependente. As pessoas se tornam codependentes de vícios e comportamentos alheios e passam a proteger seu ente querido de forma a minimizar os efeitos de seu abuso. No campo emocional, um cônjuge, parceiro, amigo ou familiar passa a molestar seus entes próximos, um ou mais. Esse sujeito molestado geralmente entra em negação e tem dificuldade de reconhecer a sua responsabilidade de sair da codependência, de deixar o outro se responsabilizar pelos males que causa e sofrer seus efeitos morais, físicos e psicológicos.

O fim de uma relação abusiva depende da atitude de um dos membros da relação. Já o fim da codependência emocional requer maiores esforços e ajuda de um profissional da saúde mental, a começar por um psicólogo clínico. A codependência emocional pode acobertar muitas violências, como o gaslighting já citado. Em qualquer relação afetiva, especialmente as amorosas, a codependência é uma porta aberta para a outras violências mais sérias, danosas ao corpo físico e psicológico.

Quando Cher gravou Strongh Enough, escrita por Paul Berry e Mark Taylor, não sabemos se ela passava por um momento difícil na sua vida sentimental, nem se os compositores fizeram a música baseando-se em experiências pessoais. Mas na nossa cultura o abuso em relações afetivas é algo que acontece a todo momento e dificlmente não está acontecendo agora no seu lar. A vida não é igualmente justa para homens, mulheres cisgêneros, heterossexuais ou homens e mulheres LGBTQIA+. O mundo é mais difícil ainda para quem não está sob o signo do gênero binário ou não quer negociar com ele. No entanto, mesmo em ligações afetivas entre pressoas fora do espectro cisgênero, é comum vermos padrões de comportamento culturais de abuso e violência se repetirem. Na própria afetividade líquida há um traço importante de resistência ao comportamento culturalmente construído de dependência emocional. Esse tipo de afetividade sem apegos é, de fato, construída sobre experiências malfadadas de relações duradouras, mesmo que sejam de outras pessoas.

Sejamos fortes o suficiente, para vivermos sem o que nos faz mal.

Por Alex Mendes

para sua coluna O Poder Que Queremos

 

Capa: Imagem de Elias por Pixabay

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