Quando o assunto é Black Mirror acredito que cada um tenha seu episódio favorito, embora alguns se destaquem mais que outro. White Bear é um dos favoritos da galera, quando tivemos as eleições de 2018 pudemos ver Momento Waldo passar diante dos nossos olhos, mas o meu favorito não é um dos tão comentados assim e acredito ser um dos mais subestimados da série, 15 milhões de méritos.
15 Milhões de Méritos (15 Millions Merits no original) conta a história de Bing. Ele trabalha no ambiente das bicicletas, nesse mundo distópico é o local que gera a energia para toda a localidade subterrânea em que as pessoas vivem. Enquanto pedalam, os trabalhadores braçais têm uma série de opções de programação televisiva ao seu dispor que variam desde jogos de tiro nos faxineiros, pessoas fora de forma que contribuem limpando e sendo humilhados pelos que pedalam, até programas em que as pessoas gordas são continuamente humilhadas para a diversão de quem assiste.
Dentre os programas, um deles se destaca como uma chance de subir na cadeia e se tornar uma estrela, o Hot Shot, um programa de talentos em que se pode participar comprando um ticket dourado no valor de 15.000.000 de Méritos, a moeda corrente do local. Um outro meio de sair da vida de pedaladas e atuar no canal pornográfico, uma vida, em que as mulheres são drogadas para sentirem prazer enquanto ficam à mercê do abuso físico e mental para o entretenimento de quem quiser assistir.
Um certo dia, Bing está no elevador a caminho de sua bicicleta quando Abi também entra. Bing ao vê-la sente algo de especial pela garota instantaneamente e passa a observá-la de maneira tímida. Em um determinado momento ele a ouve cantar e isso mexe profundamente com ele. Em uma sociedade em que o máximo que se consegue fazer é comprar roupas para o seu avatar virtual, a bela voz e a canção cantada por Abi o faz pensar que ela tem tudo para ser a nova estrela do Hot Shot e apesar de ela não ter o valor para o ticket dourado, ele se voluntaria para comprá-lo para ela, já que ele tem a quantia em Méritos herdada pelo irmão que morreu. Ele acredita no talento cristalino dela, que para ele é algo real e não só mais um item que pode ser comprado com Méritos. Abi reluta, mas decide aceitar e é agora que começa a reviravolta.
Abi performa a bela música de Irma Thomas, que ela diz ter sido ensinada pela mãe, “Anyone Who Knows What Love Is (Will Understand)” e apesar de ter caído nas graças do público e até mesmo dos juízes, que em um primeiro momento elogiam sua performance, o que lhe oferecem de proposta é algo bem diferente de atuar cantando, a verdadeira intenção deles era que ela se tornasse uma das estrelas no canal pornográfico. Abi, que recebeu um tipo de droga antes de sua apresentação, e pressionada pela bancada de juízes e o público, acaba aceitando a oferta de atuar nos canais pornográficos.
Nessa primeira virada a leitura que tive é de como na sociedade capitalista que vivemos as coisas funcionam de maneira bem semelhante. Só sobe de fato quem os que estão em cima aprovam e como eles querem. Em um paralelo temos a personagem Selma, o exemplo de cantora que conseguiu subir na vida através do Hot Shot e hoje é uma estrela, mas ela nada mais é que um produto criado pelo sistema para criar uma falsa esperança de que você pode subir por mérito próprio, quando na verdade são os três jurados da bancada quem de fato definem e não irá importar se seu talento é “real” ou se “toca o coração das pessoas”.
Em nosso dia a dia vemos muitas matérias sobre pessoas que trabalharam duro e conseguiram sair da miséria e com elas a propaganda de que basta trabalhar que você também consegue, mas a realidade é que essas são exceções e não regras. Quantas vezes não vemos por aí pessoas que são medianas, mas tem alcance porque atendem padrões físicos e de pensamento alinhado ao capital e com isso são apoiadas e impulsionadas por ele? Não existe meritocracia, e tanto Abi quanto Bing acabam descobrindo isso da pior maneira possível.
Depois de ter o sistema destruindo inteiramente aquilo que lhe tocou desde muito tempo, algo que ele considerava real, Bing entra em uma profunda crise de depressão e apatia. Seus dias passam a ser consumindo o que quer e fazendo o seu trabalho, não existia nada que aquele sistema não destruísse e ele descobriu isso ao ver a situação atual de Abi, mostrada como a próxima sensação do canal pornográfico.
Em um certo dia, ao ver o comercial da estreia de Abi no canal, Bing surta e acaba quebrando uma das paredes de vidro de sua pequena cabine. Ao ver pedaço de vidro no chão ele parece ter uma ideia do que fazer, ele iria em busca de sua revanche contra o sistema, poderia cair, mas não sem lutar. Ele passa a trabalhar incessantemente e economizar ao máximo para adquirir o ticket dourado mais uma vez, mas dessa vez ele será a figura em frente aos três juízes e ele terá sua revanche.
O grande dia chega, ele começa a apresentar um estranho número de dança improvisado, mas logo ele mostra para o que veio. Sacando o pedaço de vidro que tinha escondido na calça ele aponta para o uma artéria em seu próprio pescoço, e ameaça se matar ali mesmo. Aquilo não era de interesse do programa, então os juízes param a segurança e Bing faz o seu discurso sobre como as pessoas estão sempre dopadas por uma vida de consumo de coisas e que em muitos casos nem são reais, como roupinhas para os seus avatares virtuais que estão naquele momento como plateia do show.
Ele pontua que se existir algo que seja minimamente real ou espontâneo os juízes, no caso o sistema, logo trata de converter para um produto que possam vender para manter todos os trabalhadores ali eternamente em uma posição passiva diante das desigualdades ali ocorridas. E é nessa hora pessoas que a segunda reviravolta vem e ela é para mim ainda mais aterradora que a primeira.
Ao ouvir o discurso de Bing, os juízes CONCORDAM com o que ele diz. De fato, era exatamente o que acontecia ali e era inegável o que ele disse. As pessoas aplaudem fortemente as palavras ditas e é nessa hora que vemos como o sistema é ardiloso, os juízes então dão uma chance de ouro para Bing. Um programa, para ele fazer EXATAMENTE o que está fazendo ali, FALAR A VERDADE, no caso a verdade dele como bem pontuado por um dos juízes. Bing fica atônito com aquilo, sua intenção era bater de frente com o sistema, deixar algo de real para as pessoas que estavam assistindo aquele programa, mas estava ali diante de uma oportunidade única, subir de vida e virar um produto…
E ele aceita.
O episódio termina com os trabalhadores em sua vidinha de sempre enquanto assistem Bing fazer sua live e depois desfrutar do conforto de sua nova vida, encerrando o episódio com um final extremamente pessimista.
Mas o que isso tem a ver com o nosso cotidiano, Marcos? Todos os dias estamos vendo lutas que são reais como o feminismo, a LGBTQIAP+, gordofobia, racismo serem cada vez mais cooptadas pelo sistema assim como foi com o Bing no fim do episódio. Tivemos agora o lançamento do trailer de a Pequena Sereia com uma protagonista negra, e apesar de isso ser uma coisa que dê um impacto, isso é apenas o sistema lucrando em cima de pautas justas.
Explico melhor, garotas negras se verem em uma protagonista negra é ótimo, mas quantas delas terão alguma chance de fato de chegarem em Hollywood e atuar como protagonistas? Não adianta eu mostrar exemplos, quando não dou os meios para isso e em uma sociedade desigual e injusta como a nossa, muitas podem tentar, mas provavelmente serão massacradas pelas dificuldades que virão em sua tentativa.
Não preciso ir longe para mostrar o meu ponto, basta relembrar do BBB20 em que o ator Babu Santana, homem gordo e negro, estava passando fome por falta de trabalho, embora já tivesse seu talento reconhecido em premiações e atuações excelentes. Ou seja, ele precisou passar por um programa que o expôs por 24 horas, em contato com pessoas de realidade completamente diferente da dele e que sequer tentavam compreender o seu lado para só agora conseguir se destacar.
Pego também de exemplo o próprio estúdio Disney que agora apresenta personagens diversos, mas foi pega em flagrante financiando leis anti LGBTQIAP+. Fica muito claro, ao menos para mim, que a intenção é financeira e não de auxiliar na vida das pessoas que sofrem dessas mazelas.
O que de fato precisamos é de derrubar esse sistema que nos faz buscar um topo e destruir essas ideias em nossas cabeças. Não queremos o topo, queremos todos juntos, ninguém maior, ninguém menor, todos valorizados pelo que podem entregar e que possam fazê-lo de maneira ser algo real e não só mais um produto como podemos ver nesse episódio de Black Mirror. Desejem por algo real, mas não deixem que o sistema corroa e transforme isso em mais um artigo em sua boutique.
Respostas de 3
Fascinante. Eu assisti a poucos episódios dessa série, mas certamente a esse, por causa do ator britânico, Daniel Kaluuya. Depois eu fiquei fascinado com as possibilidades de leitura e interpretação das distopias mostradas. Fico feliz de ler aqui uma delas, bem lúcida e inteligente.
Oi Alex, muito obrigado pelo comentário, sendo você eu acho um elogio muito bem vindo e que me deixa muito feliz. <3 De fato esse é um dos episódios com muitas nuances e eu fico fascinado com o quão bacana ele é. Sempre quis escrever sobre ele e agora tive a oportunidade e fico feliz com o seu feedback. o/
O que isso, você é um excelente escritor e uma mente antenada, capaz de achar coisas inteligentes nos lugares mais comuns. Fico feliz de te ler.