No texto passado, eu me debrucei sobre a suposta história não documentada (a não ser por textos do Novo Testamento) do cristianismo. A ideia foi estabelecer a sua origem como parte de um projeto de criação de uma religião baseada no amor e na paz, quando de fato, trata-se de uma religião que nasce num ambiente de conflito e embates por causa das constantes mudanças no espaço geográfico e histórico da bacia do Mar Mediterrâneo. Nesse âmbito, o cristianismo se propaga entre os mais pobres e também entre ricos, pregando a mensagem de salvação e de vida abundante no pós-morte.
Até hoje, esse tipo de pregação faz sentido porque a vida é muito frágil e curta, não importa onde estejamos ou vivamos. Encarar a fragilidade da vida leva a algum tipo de perplexidade, inação e falta de esperança. Nesse momento, a religião promete algo que dá sentido à vida: viver a serviço de um Deus que recompensará cada sujeito de maneira maravilhosa no porvir. De fato, isso não é exatamente uma novidade nas religiões da época, todas prometem algum nível de recompensa, nessa ou em outra vida. O cristianismo, no entanto, introduz de maneira mais radical a exclusividade. O Deus dos cristãos é o único deus, sendo que outros são falsos, ou identificáveis com o Diabo que tentou Jesus Cristo no deserto, de acordo com a narrativa do evangelho. Além desse discurso de exclusividade, o cristianismo também criou uma ideia perturbadora nos estudiosos de sua própria teologia: os motivos da salvação não eram oriundos da fé ou do modo como os fiéis se comportavam. Mas vinha diretamente da escolha do próprio Deus que pode, ao seu dispor, condenar alguém justo e salvar um injusto. A lenda evangélica de Cristo salvando o ladrão na cruz parecem ser uma prova irrefutável disso tudo. As digressões filosóficas de Paulo, de repente, afastam radicalmente o cristianismo da base filosófica grega que continha seu ideário primitivo: não é mais permitido justificar-se por obras, mesmo que uma carta de Pedro, suposto apóstolo analfabeto de Cristo, diga que a fé sem obras é morta. Mas isso logo se resolveu: nenhum ser humano decide por sua própria salvação. Isso fica na mão de Deus. E de seus representantes mais diretos.
Ou seja, a caminho da Idade Média, o cristianismo se torna uma religião universal, católica (em grego), ou seja, ela se sobrepõe a todas, fazendo com que todos os povos sejam enxertados como ramos na oliveira original de Israel (ideia lançada por Paulo na carta aos Romanos). Isso estabelece seu poder de atuar como religião missionária, sobrepondo-se ao “paganismo” e ao “politeísmo” dos povos europeus originais. No Império Romano, no entanto, não foi essa característica do cristianismo que o tornou mais afeito ao poder: a religião dos apóstolos criava corpos úteis e dóceis, sem vontade política: dando aos Césares o que era deles e a Deus o que era da divindade. Em pouco tempo, o cristianismo se espalha entre ricos com a consciência pesada por terem muito, e entre os pobres, escravos, abaixo da linha da cidadania. A obediência dos cristãos aos seus padres e bispos fez crescer o olho das autoridades, que passaram a estreitar seus laços com a religião. Dessa forma, Constantino torna a religião cristã legal. Décadas depois, Teodósio transforma o cristianismo niceno em religião de estado. Assim, nasce uma crença organizada que pode ser utilizada como ferramente de um projeto civilizatório que já existia anos antes dela. O mundo medieval, que vê o império romano se esfacelar, tanto no oriente quanto no ocidente, vê uma unidade europeia baseada numa fé cristã, mesmo que dividida, mas orientada no mesmo processo de civilização e submissão dos não europeus à palavra de Deus e de seu filho Jesus Cristo.
Um vídeo didático sobre o cristianismo nos mil anos entre a antiguidade e o mundo moderno:
Claro que junto com Cristo, vinha também o mercantilismo europeu, o genocídio de povos originais, a colonização e a destruição de culturas em nome de uma sanha de lucro que percorria toda a cadeia de poder, do menor dos padres até o Papa. Nesse meio tempo, o projeto de espiritualidade cristã sofria bons e maus momentos. O movimento de monasticismo da antiguidade continua na Idade Média e no mundo moderno, embora sob controle. Santos populares, místicos e milagreiros pipocam ativando o imaginário das pessoas para que elas não percebam que a religião só trata de política e negócios. As ilegalidades e escândalos de um grande e oneroso clero sempre foram e sempre serão o problema maior da espiritualidade de qualquer denominação cristã, hoje em dia, seja católica romana ou não, seja protestante, pentecostal, neopentecostal ou qualquer que seja.
Este vídeo humorístico mostra a relação entre a economia moderna nascente e a fé cristã:
Essa herança de corrupção e a tendência ao acúmulo de dinheiro vem da antiguidade e não se aparta do cristianismo, à medida em que a religião não se aparta, de forma nenhuma, das instituições de poder que estão em voga. Enquanto isso, a mesma religião e suas denominações investe em espiritualidade de massa, em grandes romarias, em templos para multidões, em milagres supostos, ingênuos até, para manter coesa a fé em algo sobrenatural. Os fiéis sempre serão a fonte primária dos recursos financeiros do clero, mesmo que as relações com os poderes também sejam rentáveis, isso demanda a manutenção das narrativas da salvação, do milagre, mesmo em épocas com as atuais, em que nada escaparia aos olhos da ciência.
Esse poderio do cristianismo é que justifica forçar-se a sua antropologia religiosa goela abaixo. Vemos seu reflexo nas leis oficiais dos países ex-colônias de europeus, na América Latina. Vemos o ideário relgioso determinar quem é ou não é normal, sobrepondo-se às ciências humanas e médicas. Por esse motivo, mesmo que uma pessoa LGBTQIA+ não seja adepta dos valores e crenças cristãs, é normal que se sinta oprimido por elas, já que não pode evitar toda uma cultura que compartilha valores simbólicos condenatórios, que colocam essas pessoas abaixo da linha da civilização.
Não ajudou muito ver que, historicamente, o nascimento da ciência psiquiátrica, no século XIX, mostrou uma grande condescendência com o ideário cristão. Em vez de pesquisar as anormalidades da mente humana a partir de uma proposta empírica do funcionamento do cérebro e da formação social da mente, temos um corre-corre para adoecer o corpo de acordo com os parâmetros de salutabilidade baseados no pecado.
A culpa da tolerância ao estupro, abuso sexual e pedofilia, nas culturas cristãs, ao longo de todo o século XX, é do cristianismo. Isso acontece porque é quase impossível separar o comportamento sexual masculino referendado, antes de tudo, pela fé cristã, do comportamento doentio e ilegal, de maneira clara. Até hoje, muitas pessoas questionam a idade do consentimento, o conceito de estupro dentre muitas outras coisas justificando-se pela fé. Não podemos nos esquecer que as igrejas cristãs escondem terríveis problemas sexuais: abusos, estupros, o caso recorrente de padres pedófilos na Igreja Católica.
Por outro lado, se o comportamento masculino predatório é justificado — mesmo que isso signfique colocar lei e religião uma contra a outra, na prática — o comportamento feminino e LGBTQIA+ continua sendo taxado, mesmo quando a lei indica liberdades garantidas. Quando homens e mulheres não têm um comportamento afetivo e sexual padronizado pelo cristianismo, assim como ocorre em outras culturas religiosas preconceituosas e excludentes, a lei tende a amparar menos, abandonar e negligenciar.
Não basta ter a lei do nosso lado, precisamos ter policiais, médicos, juízes, professores, assistentes sociais, pessoas preparadas para agir fora do círculo das crenças que possui, ou pelo menos que a maioria possui. Recentemente, um caso de aborto prescrito a uma menina de onze anos, impedido por uma juíza cristã, mostra o absurdo do cristianismo como forma de controle e imposição. A lei foi distorcida até que a fé tenha se sobreposto à necessidade de se proteger a vida das pessoas. Esse tipo de distorção não se justifica pela fé em si. O cristianismo se debate em suas forças políticas conservadoras exatamente porque os detentores do poder que seguem essa crença não querem abrir mão do poder quase absoluto que esse falso deus lhes dá.
Enquanto isso morremos, todos. O Brasil é um dos países que mais mata LGBTQIA+ do mundo, matando mais que países onde a diversidade é ilegal. Meu Estado é campeão de feminicídios e de casos registrados de violência contra a mulher. E é um lugar onde o cristianismo é praticamente unanimidade.
Por aqui, o cristianismo que corrói a vida, que se imiscui no poder é uma herança colonial. Veio com as caravelas, mas não foi embora com a independência. Mas mantém-nos ligados a um laço de dependência espiritual, econômica e social a certas estruturas de poder que ressaltam a riqueza, o machismo, em detrimento da mulher e da população LGBTQIAP+. E eu tenho poucas esperanças de ver isso mudar, em vida.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos