A “Ode ao burguês” é um dos poemas mais lidos de Mário de Andrade. Datado de 1922, o mesmo ano da Semana de Arte Moderna, o poema coloca na linha de mira dos artistas conscientes e desejosos de mudanças aquele que é o seu principal inimigo: o burguês, conservador, cristão, católico romano, rígido, reacionário, tradicionalista. Esse mesmo ódio mostrava Cazuza, na sua canção de 1989, “Burguesia”, ao criticar a classe social viúva da Ditadura Militar, antidemocrática, consumista, cruel, pouco devotada aos valores que insiste em defender. A burguesia inimiga da arte de 1922, agora também é a inimiga dos pobres, das crianças, dos mais fracos, na poesia de Cazuza.
Mário e Cazuza sabiam do que falavam. Ambos eram burgueses, ambos lamentavam a sua origem no meio de tanta crueldade. Mas por que a referência cultural que se faz aos mais ricos passa por isso? Passa pela maldade e por essa denominação: burguesia? A história é longa demais para um texto só, mas tentemos entender. A classe burguesa nasce no seio da Europa, durante a Idade Média, principalmente no final desse período. Os habitantes dos burgos (cidades) passaram a ter maior importância econômica por causa do desenvolvimento do comércio, nessa época. Essencialmente, os burgueses são trabalhadores, negociantes, comerciantes, prestadores de serviços importantes para a vida nas cidades da época, já que o feudalismo estava se enfraquecendo e o crescimento da vida nas cidades aumentava o poder de quem ali morava e comandava a vida econômica.
A burguesia, portanto, nasce num momento importante no mundo, mas demora a ter toda a importância que julgava ter. E isso acontece porque a formação dos Estados-Nação na Europa moderna teve total apoio da burguesia, que logo se sentiu traída pelos nobres, que não devolveram esse apoio em forma de representatividade política. Daí nasceu toda essa mágoa. As Revoluções Burguesas na França e na Inglaterra aconteceram por causa disso: a liberté, egalité e fraternité na verdade eram desejos burgueses de se igualarem à nobreza. Claro que o povo mais pobre participava disso tudo, apoiando os burgueses, reais representantes dos verdadeiros braços que sustentavam o governo. Mas logo a burguesia se mostrou muito mais interessada no poder político que ainda não tinha do que, exatamente, nos valores universais que os levaram até ali, no topo.
O Casal Arnolfini, de Van Eyck, de 1434 (sob domínio público). Imagem clássica da burguesia renascentista, cujos valores causaram uma revolução no mundo, abrindo as portas para as formas de capitalismo que a história conhece, para o desenvolvimento sob bases coloniais, para a exploração das Américas, da África e Ásia, sob a desculpa de que burgueses europeus eram predestinados a dominar o mundo: uma mistura de pensamento cristão com ambição econômica desenfreada e profundo desrespeito à cultura de povos não europeus e à natureza. Bem-vindos à burguesia, uma doença que ainda assola a humanidade.
A classe burguesa mostrou-se igual à nobreza: violenta, corrupta, traidora de seus valores. Por isso os ideais burgueses são tão contraditórios, aliás, a buruguesia é símbolo da contradição, da hipocrisia, assim como nos poemas de Cazuza e Mário. A burguesia é podre, fede, é um purê de batatas morais inútil, no entanto, ainda detentora do poder que nos rege, nos controla, nos governa e é a mesma burguesia que nos traz boas e más coisas por meio de seu governo.
A história do Brasil é peculiar, totalmente diferente da europeia. Surgimos sob o signo maldito da colonização, por isso temos laços com a burguesia europeia, mas custamos a ter a nossa. Aliás, náo tínhamos até recentemente. Depois da independência, apesar de haver desenvolvimento industrial na América do Norte, nossos governantes optaram por manter o país na trilha agrária: deveríamos fornecer matéria-prima e alimentos para a Europa, uma espécie de colônia, só que independente. Somente após os primeiros esforços de modernização é que tivemos uma pequena burguesia: primeiramente comerciante, política, formada por funcionários públicos bem remunerados. Esse estrato copiava tudo a Europa: falava-se francês nas confeitarias cariocas, a moda europeia era usada no calor dos 40 graus do Rio de Janeiro. Essa burguesia irritava Mário de Andrade, estudioso de nossa língua, música, tradições e costumes. Vendo o imenso poder simbólico e econômico da cultura brasileira, Andrade se irritava com o pensamento minúsculo do burguês brasileiro afrancesado, parnasiano, gastando aos borbotões para parecer europeu, mas de fato, descendendo de pessoas que saíram da Europa expulsas, condenadas, degredadas, afugentadas pela fome ou pela falta de oportunidades.
Já Cazuza falava de si mesmo ao criticar a burguesia: a crueldade de uma classe trabalhadora média alta, que vivia nos melhores lugares, nos melhores bairros do Rio de Janeiro, a tentar ignorar quem vivia nos morros, esquecidos, isolados, bestializados. Os burgueses dos anos de 1980 venderam a alma para a Ditatura, em troco de privilégios econômicos. A burguesia industrial brasileira, que começou após a morte de Mário de Andrade (1945), viu o desenvolvimento do país e a separação clara entre burguesia e proletariado. Essa separação amedrontou os mais poderosos. O país que nunca tinha sido, de fato, democrático por muito tempo, viu-se mergulhar numa Ditadura de 21 anos que foi amplamente apoiada pela burguesia. A ideia era não deixar o poder cair na mão dos trabalhadores. No entanto, a burguesia também abre a mão de seu poder político, da sua representatividade, concendendo a uma classe governante militar autoritária o comando de uma nação continental com milhões de trabalhadores pobres e passando necessidades.
A reação contra a Ditadura também é uma ação da burguesia, seus setores mais renovados tomando para si o mesmo poder que tinham passado à mão de déspotas. Foram burgueses que nos reorganizaram como nação na época, foram burgueses que nos deram uma Constituição Federal, reorganizaram os três poderes, os encheram de gente e, por fim, foram os burugueses que nos colocaram na trilha da democracia capitalista.
O século XXI começou com um governo burguês colocando o país num caminho de estabilidade econômica, mas sem dar devida atenção a uma série de desigualdades históricas muito grandes. A narrativa de que vivíamos no meio de uma profunda dívida externa e estávamos fadados à recolonização pela industrialização europeia, norte-americana, japonesa ou chinesa estava mais que impressa nas consciências do povo brasileiro. O tal desenvolvimento não vinha nunca. O preço de tudo era caro, mesmo com o dólar baixo, mesmo com o dinheiro valendo o mesmo o ano inteiro. Milhares de brasileiros queriam morar fora, para tentar a vida em lugares melhores e trazer dos Estados Unidos e da Europa, o dinheiro suado que o Brasil não dava.
No entanto, o governo progressista, ainda de inspiração burguesa, colocou o país numa trilha diferente, de 2o03 a 2016. O país logo pagou suas dívidas externas, tornou-se credor do FMI, começou uma trajetória de desenvolvimento e distribuição de renda e justiça social que merece muitas críticas. Só não mereceu parar como parou, por obra da mesma burguesia. Aquela que vem sabotando o país há mais de um século, puxando o tapete do desenvolvimento, impedindo governos de dar rumos ao país, pensando na concentração de poder e renda na mão de poucos. A burguesia fraca, débil intelectualmente, que precisa olhar para o norte para reconhecer valores em que crê de Mário de Andrade, a mesma que é cruel com os mais fracos, como mostrava Cazuza, é a burguesia que patrocionou o fim do governo progressista em 2016, trazendo ao poder uma figura política que representa todo o lado ruim de ser burguês.
Esse novo presidente, eleito pela maioria, com apoio que a burguesia sempre tem dos mais pobres, quando é necessário, mostrou duaas facetas. A primeira delas é a da incompetência e da ingerência. Sem um representante oficial de si mesma, a burguesia idealizou um líder que fosse a síntese de tudo aquilo que ela acredita: tradição, conservadorismo, combate às minorias, valorização dos mais ricos. No entanto, isso signficou a chegada de um despreparado ao poder. Isso mostra a outra face desse presidente: incapaz de valorizar a vida, conduziu o país a uma mortandade de aproximadamente 700 mil pessoas durante dois anos de pandemia, de acordo com números oficiais. Além disso, a economia vai mal, tudo vai tão mal que a própria burguesia se vê dividida. Não sabem quem apoiar para a próxima eleição, não conseguem mais emplacar seu anti-herói. Novamente a burguesia vê seu poder político sair lentamente de suas mãos. Em 2002 foi para a mão de um líder sindical. Agora pode voltar para a mão dele novamente, já que as soluções burguesas para tudo não funcionam.
Não funcionam mesmo. A burguesia quer destruir tudo. Consumir o meio-ambiente, os recursos hídricos, quer destruir a natureza, aquecer o globo terrestre, ganhar em dólar e viajar para os EUA, reclamando dos serviços prestados a eles. A burguesia é parasitária, capitalista, ela é o cerne no capitalismo, é encabeçada por superbilionários que compram uma rede social com o dinheiro que dava para resolver o problema da fome de seis planetas Terra juntos. Seis. A gente só precisava de um sexto desse dinheiro. E ainda tem pobre que defende esse tipo. Quer fazer um experimento sociológico? Poste algo contra algum rico, multimilionário ou bilionário nas redes sociais e colha os comentários. Eles têm defensores que nem sabem o que estão dizendo. Gente que seria morta pela vontade direta desses ricaços se houvesse a oportunidade. Mas que os defende porque defender rico é uma espécie de prerrogativa cultural de alguns brasileiros pobres. Eu sei porque isso se aprende dentro de casa. Eu conheço casos semelhantes.
Enfim, o ódio à burugesia por si, só, no entanto, não adianta, porque ódio não leva a nada. Ódio é o que burgueses tem da vida e de todo o mundo que os cerca. Precisamos ser ativos, conscientes e jogar contra a burguesia o sistema que ela criou para nos controlar. No fundo a democracia burguesa foi criada para que pobres não queiram participar. E se eles quiserem, como há de ser?
Fica a dica.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos