“Crescer não é o problema. Esquecer é que é.” Essa máxima de Saint-Exupéry está estampada em uma pequena caneca de porcelana com a borda dourada, vendida por uma grande loja de departamento. A presenteei para Geovanna, a filha da minha amiga Crisvanete. Eu gostei tanto da máxima, que a comprei para mim, como para dizer a mim mesmo: “Crescer não é o problema. Esquecer é que é.” Vamos crescendo, aprendendo coisas ao longo do caminho, e esquecendo outras tão fundamentais. Faz muitos anos que saí do meu seio familiar mais próximo, a última vez que estive com ele, fui pai de uma linda menina de olhos luzentes, à época ela tinha 72 anos. De lá para cá, muito se passou e convivi sempre com adultos, chatos iguais a mim.
Nessas pequenas-grandes e inesperadas reviravoltas que a vida dá, cá estou convivendo com um adolescente. Doravante, ele me mostra na prática todos os dias o meu “Esquecer é que é”… Frente à minha própria corrida por um lugar ao sol, paro e escrevo este texto, por não querer esquecer, porque já cresci, o pêndulo de Foucault não voltará mais, ele sempre vai nunca regressa, embora pareça que ele vá e volte, nunca voltará. Envelheço, luto braviamente contra o esquecer, e talvez se dê aí a minha sereno jovialidade, conquistada cada dia, a duras penas. Pois quanto mais se cresce, mais se perde, mais se esquece… na casa dos Rocco, ontem estávamos deitados, já preparados para dormir, como sempre sói acontecer, e Enzo fez a seguinte observação: “Você é o adulto mais criança que conheço, o único. ” Isso de me mostrar a ele “criança” me fez refletir que sou essa criatura dual, a ter um corpo de homem que envelhece a todo instante e ações e até mesmo, como ele mesmo observou, uma voz de criança. Então, dual, paradoxal, firmo essa fronteira entre o que é másculo, pelos por todo o corpo, barba, e uma postura, muitas vezes pentelha àquele que me pentelha. A um adolescente, e já fui um, claro, um homem é algo muito estranho. Porque o homem está ali dado, ao que ele será e terá. Então, entendo a repulsão-atração pelos meus pelos, que lhe diz: “é nojento, porque ainda não os tenho, mas é fofinho, quando coloco o meu tato sobre eles”. O meu corpo já mudou, o dele está mudando, a ele sou este estranho estrangeiro que ele se tornará também.
O adolescente está na fronteira entre ser menino e tornar-se homem. Meu pai, que não convivi, seria extremamente rude e fechado comigo; por minha vez, procuro agir da maneira mais natural possível. No entanto, estou ciente que sou “homem”, já atravessei a fronteira. Mas, atravessada esta fronteira, isso não quer dizer que não o entenda, e que me policie em meu ser adulto que sabe tantas coisas e não sabe nada ao mesmo tempo. É preciso tomar cuidado, para que o saber, a experiência não tolha, não ceife as esperanças de um ser humano. Lembrar é o tempo inteiro esquecer. Então, quando sua mãe vem brigar conosco porque é tarde e estamos a conversar ainda, e ele a olha na penumbra do canto da sala, e por não estar esperando que ela surgisse ali, em sua veste alva, ele a associa com um fantasma. Eu entro na brincadeira, dou risada, falo “é um poltergeist!” kkkkkkkkkkkk, porque vejo que a imagem realmente procede; os adultos perdem o encantamento do mundo em fazer determinadas associações. O que é mágico vai se perdendo, vamos crescendo e esquecendo…
Esquecer é que é… então quando Enzo me chama para jogar futebol e basquete, e eu, a criança de antanho, que nunca jogou estes esportes, topo, me coloco em seguir intuitivamente o que eu saberia que é driblar e acertar a cesta. Aí, frente a fronteira que existe entre nós, eu homem e ele ainda menino no seu tornar-se homem, pareço-lhe, palavras suas, um ogro, orangotango, kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk! Realmente devo parecer, atribuindo-me ainda a alcunha de desengonçado. Mas é aí que está a sereno jovialidade; não estou interessado na regra, na norma, no jogo retilíneo, estou interessado em me divertir e fazer com que o pequeno homem se movimente, se divirta, saia da inércia, levante todas as manhãs e vá brincar e observar os cachorrinhos que tanto ama. Jogamos e quando ele apela para uma vassoura que está na quadra, me divirto mais ainda. O embate é inevitável, mas ele é lúdico, porque agora volto a me lembrar, já fui criança um dia. Quando chegamos em casa, a contar a crônica do jogo do dia, para sua mãe, sem perceber que havia outra pessoa em casa, somos iguais porque “esquecer é que é”, nesse momento estamos lembrando os dois. Assim aquele que é tio, irmana-se, torna-se igual ao sobrinho.
“Ontem o menino que brincava me falou, que hoje é semente do amanhã”… A semente nunca deixa de brotar, de dar frutos. O que faz ela parar de crescer é justamente, lembrar de tudo, de todas as constantes tarefas da faina diária, esquecermos… Se ele não vai à pracinha, não levo sua bola de futebol e de basquete. Só faz sentido com ele. Levá-las configuraria egoísmo, falta de empatia, seria esquecer… Então, quando Enzo me fala que eu sou o adulto-criança, que tenho esta característica, sem perceber, bem devagar, ele já torna-se homem ao observar-me. Eu lhe dou a estranheza estrangeira de ser já homem feito, e ele dá-me, com seu seu convívio e suas questões, a sereno jovialidade que não quero esquecer. Assim, homem e menino se amalgamam, naquilo que se chama mais uma manhã no lar dos Rocco.
Foto de capa por Saeid Anvar no Pexels