Ecofascismo é um dos termos obscuros que eu aprendi nas redes sociais. Aparentemente isso é uma tendência ecopolítica que surgiu a partir do anseio por proteção e controle da natureza. O ecofascismo compartilha com o nazifascismo europeu alguns princípios, abertamente, e se alinha com o neofascismo do século XX e XXI. O ecofascismo, de fato, bota a culpa da destruição da natureza no espalhamento descontrolado da população, o que justifica o capitalismo predatório, não o contrário: o capitalismo predatório que produz condições de destruição da natureza. Existir como ser humano sobre o planeta é um problema para todos e de repente, matar seres humanos é justificável.
Esse texto nem é para definir ou exemplificar o ecofascismo, mas de fato essa é uma ideia interessante que me ajudou a compreender um fenômeno cotidiano. Daí eu pensei: “Isso vale um texto de opinião”. Não porque eu goste ou tenha condições de falar sobre temas tão importantes. Mas eu sou um atento leitor dos discursos que me cercam e sou obcecado em saber de onde vêm as ideias que eu leio, como elas aparecem, o que elas dizem e porque não são ditas outras coisas no lugar delas.
Então, não pretendo mesmo criticar nem entrar no pantanoso terreno dos debates sobre ecologia nesse momento. No entanto, há coisas preocupantes que nos assolam: pandemia de SARS-COVID-19, guerra na Europa entre Rússia e Ucrânia e a tragédia humanitária que isso tem trazido ao planeta. O que isso tem a ver com ecofascismo? Há muito disso na perplexidade das pessoas num mundo em crise. Por outro lado, as ideias ecofascistas são um refinamento de certas revoltas que o ser humano tem com um mundo em convulsão.
O ecofascismo nos coloca abaixo de nós mesmos, coloca uma natureza que só existe porque sabemos que ela existe, acima de nós mesmos. Será que a opinião ecofascista não quer, por sua vez, que morram todos os que atrapalham a sua visão de mundo e natureza em prol de poucos escolhidos? E que pessoas seriam os verdadeiros herdeiros da Terra ecologicamente correta? O ecofascismo, assim como qualquer tipo de fascismo, baseia-se largamente na opinião generalizada das pessoas. Em culturas ocidentais e de periferia, há uma constante decepção com o ser humano, uma crença metafísica, cristã, que o mundo jaz no pecado e isso gera morte. Portanto, se o homem morrer, tudo bem. O homem não merece a Terra que Deus criou.
Isso mesmo, meus caros, o cristianismo é ecofascista. Por definição. Porque também é fascista.
Não há como dizer que certas opiniões sejam somente coincidência, e não ecofascismo. Não há coincidências nesse caso. De fato, o ecofascismo se aproveita da lógica da revolta humana contra o establishment. Por isso as coisas são como são. Vamos a exemplos. Adoro essa parte. Claro que eu não vou analisar aqui teóricos fascistas em prol da natureza, mas opiniões de gente sobre a vida humana, sobre nós, nossos problemas e a natureza. Uma listinha abaixo de ideias ecofascistas, mesmo que pareçam simples opiniões populares:
A pandemia veio nos ensinar
Essa é a opinião mais complicada de todas. A ideia de que tudo que acontece tem uma finalidade de ensinar os escolhidos de Javé no mundo algo que eles não poderiam aprender no catecismo, na Bíblia ou simplesmente ouvindo quem sabe das coisas. Eu fico pensando o quanto isso é problemático, o tempo todo. Porque eu ouço o tempo todo. Um “deus” de amor que “permite” que milhões no mundo inteiro morram para que um grupo de idiotas aprendam uma lição que é incapaz de mudar qualquer coisa na vida deles, que dirá no mundo.
Os seres humanos são a doença da Terra
Será que existe alguém que DE FATO acredita que o extermínio da raça humana seria benéfica para a natureza? Quem restaria no planeta para desfrutá-la e saber se isso é, de fato, bom ou ruim?
Essa ideia é tão perturbadora que não consigo imaginar como isso de fato faz sentido. Sem o ser humano sobre a Terra, nem se saberia que a Terra existe.
A pandemia veio para diminuir a população do mundo
Não, não há mesmo nenhuma ligação entre pandemia e controle populacional. E nem é a melhor forma de diminuir o impacto da vida humana sobre a natureza. A pandemia é resultado de descontrole ambiental e pune os mais fracos, não exatamente todos de forma igual e justa. Mesmo sabendo que muitos ricos morreram e morrem com a pandemia, a capacidade de alguém rico de sobreviver é maior, porque tem mais recursos.
Odeio crianças, odeio adolescentes
Mais que conflito de gerações, a ideia de que os mais jovens sejam indesejados é comparável à diretriz ecofascista de que mais filhos no mundo significa continuar destruindo a natureza. Assim como o ódio pelo ser humano em geral, detestar certos grupos também é fascismo. Embora crianças e adolescentes possam ser de difícil convivência para algumas pessoas e em alguns casos, é justo expressar nossas frustrações e desgostos com ódio? E desejar a morte de alguém que você não conhece de fato, só por ele estar numa faixa etária é bom de que forma? Por que um mundo melhor é sempre um mundo em que o conforto de alguém depende da morte de pessoas?
A culpa é do pecado, é Deus quem está criando uma nova ordem
O pior de tudo é o discurso ecofascista que se alia a novas formas de espiritualidade, do século XX e XXI. Lembra-me muito das opiniões religiosas sobre HIV/Aids nos anos de 1980: uma limpeza moral. Sempre que o ser humano se depara com a morte, a culpa é do outro, ou então uma divindade está cumprindo seus propósitos. O que as pessoas não veem é que a morte numa pandemia acaba selecionando uma classe de mais ricos. Então voltamos à mesma ideia: Deus mata pobre para rico ficar de consciência limpa.
A culpa é da China
A sinofobia, assim como a xenofobia contra todos os asiáticos voltou com força, na pandemia. E culpá-los por problemas ambientais e de saúde é uma forma de esquecermos que o coronavírus poderia ter surgido em qualquer país capitalista, em qualquer continente e em qualquer situação em que o ser humano abusa da natureza para conseguir lucro. O lucro desenfreado é o que o ecofascista não vê. A China não inventou o capitalismo, portanto não é culpa da China, não somente dela. E não estaríamos a salvo de nada se a China não existisse.
Ecofascismo e comportamento em rede: julgando as pessoas que se divertem ou se aglomeram
Não quero sugerir aqui que se aglomerar para o trabalho ou diversão seja algo seguro. Não é. Ao contrário. Mas algo não está certo no tanto de gente reclamando de gente aglomerada nos finais de semana e agora, especialmente no Carnaval. Rola de tudo, até exposed de fotos, stories etc. Mas eu entendo quem faça isso, embora fique preocupado com o rumo que isso tem tomado.
Entendo quem esteja revoltada com a morte de pessoas amadas, entendo quem tenha perdido emprego, entendo quem tenha quase morrido e também entendo quem tenha responsabilidade com a sua vida e a vida do outro.
No entanto, há nisso uma dose de denuncismo que usa um discurso vingativo que busca mostrar que muitos seres humanos merecem a morte porque estão se aglomerando. Nem todos somos como Gabriela Pugliesi, por exemplo. Ela teve e tem total condições de se proteger, não se protegeu. Como na casa de Ivete Sangalo, em que empregados foram culpados pelo surto de COVID-19 em amigos e familiares da cantora após uma festa em que todos estavam sem máscara e aglomerando. É ecofascismo, no entanto, quando alguém direciona essa mesma lógica contra as camadas populares. Ser pobre não isenta ninguém de responsabilidades, mas não dá para imaginar que pobres e ricos estejam em igualdade de condições para sobreviver a essa pandemia.
Enfim…
Não dá para achar que somos 200 milhões de Pugliesis, não é o caso. Nem que todos nós nos aglomeramos por simples desejo de sentir prazer. Ao contrário. Eu sei que milhões de trabalhadores pobres se entregam a interações sociais sem proteção nos fins de semana: boates, bares, igrejas. Isso é lamentável. Mais lamentável ainda é saber que muitas pessoas derramam seu ódio sobre as outras por causa disso. Mais uma vez, pobres, populares, trabalhadores que têm menos qualidade de vida do que ricos e esbanjadores passam a ter mais culpa sobre os problemas do mundo. Além da exploração, do atendimento precário à saúde quando precisam, os pobres não podem se divertir, usando sua liberdade pessoal.
Mas não é hora de aglomerar, é? Não, não mesmo. Mas também não é hora de disparar fogo amigo, exclusivamente. Precisamos continuar conscientizando as pessoas da necessidade do distanciamento. Mas não precisamos de mais gente humilhando pobre nas redes sociais. Até porque esses ricos esnobes, artistas, influenciadores e poderosos não sofreram “cancelamento” por muito tempo. Ao contrário, logo voltam para seus espaços para dizerem como foi a doença, o que sentiram e o que passaram etc. E os pobres?
Mais uma vez: não é certo que pobre se aglomere em tempo de pandemia. Mas culpar os pobres pelo espalhamento do vírus parece aquele argumento do agronegócio a dizer que índios e pequenos agricultores é que põem fogo à floresta.
Se você se sente mal com stories de seus amigos que resolveram correr o risco e se aglomerar em festas, bailes, praias e atividades mil, não veja. Fale com eles em particular. Não são seus amigos? Se não são, porque você tem que ver essas coisas deles nas suas redes sociais? Quer usar seu espaço na rede para publicar mensagens de conscientização e opiniões que promovam a prevenção e combate à pandemia, OK. Quer expor gente que você acha que está exagerando, tá OK também, faça o que achar melhor. Denuncie irregularidades, inclusive. Isso pode salvar vidas.
Mas não responsabilize as pessoas erradas pelo problema. A rebeldia dos mais pobres às regras sanitárias são uma resposta contundente ao tratamento que o governo dá aos menos favorecidos. Eles preferem se arriscar, pagar para ver, já que têm nada ou pouco a perder. Sim. A vida significa diferente para os que já morrem a cada dia um pouco na exploração para sustentar um mundo de Gabrielas Pugliesis, Jades Picons, Lucianos Hangs e outros tantos controversos ricos. Aliás, a vida pode até significar muito, mas ninguém quer viver pensando em morte, já que vive num regime regrado de prazer e satisfação pessoal em prol das classes mais altas. Se nossos dirigentes proporcionassem melhor qualidade de vida às pessoas, provavelmente teríamos mais sucesso na adesão às regras sanitárias.
Odiar pobre é ecofascismo. Fazer exposed de pobre nas redes sociais também é ecofascismo. Querer que os mais pobres tenham pouco prazer para que ricos possam ter dinheiro para testar seiscentos convidados para uma festa, também é ecofascismo.
De que lado você quer ficar?
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Respostas de 2
Grande reflexão sobre uma das facetas do mundo moderno, que é a culpabilização do outro por algo gerado por si mesmo. A evolução da ciência segue ao lado da decadência moral. Enfim amigo, um belo texto esclarecedor. Beijos
Isso mesmo, amigo. Sua percepção foi cirúrgica nesse ponto. Obrigado pela leitura e volte sempre!