Há três semanas, publiquei um comentário sobre o filme “Não olhe para cima”, um filme de ficção distribuído nos cinemas e na Netflix. Uma obra interessante e bem aceita pelo grande público. Não é um filme que eu, pessoalmente, consideraria excelente, mas é, de longe, a produção mais lúcida que o cinema faz em décadas.
Essa clareza toda vem da forma como o filme se mostra aos olhos do espectador: uma crônica rápida dos últimos seis meses do planeta Terra, após a descoberta do fim da humanidade. Um cometa atingirá o planeta e seu impacto destruirá a vida humana, um evento de total extinção. O problema maior nem é agora tentar evitar a destruição, mas convencer as pessoas de que os cientistas estão falando a verdade. Essa crítica é que torna o filme popular. Isso pode ser análogo à luta da medicina e da ciência contra a pandemia de SARS/COVID-19. A população, em uma porcentagem perigosa, duvida da própria existência da doença. E para explicar mortes e problemas, negacionistas e produtores de mentiras são capazes de culpar, inclusive, os que lutam para salvar vidas.
A culpa é do capitalismo
O capitalismo é que produz as moléstias que matam as pessoas. Essa afirmação não é tão inexata assim, o problema é que ela carrega uma simplificação que produz má compreensão das coisas. Se por um lado a exploração da natureza abre a possibilidade para a destruição ou a manipulação de ecossistemas, que podem gerar doenças, isso não significa que o surgimento de patógenos seja intencional. A maior parte das teorias negacionistas quer que a população acredite que tudo não passa de um grande jogo para vender vacinas, para que os médicos possam matar os velhos e inúteis, para outras tantas atrocidades que povoam o imaginário humano.
A existência real e concreta do capitalista superpoderoso, como Jeff Bezos ou Elon Musk atiça a imaginação, assim como aumenta a certeza daqueles que não compreendem como se organiza a sociedade, em função das verdades, saberes e poderes que a comanda. O capitalismo, por séculos, vem se beneficiando da ignorância humana. Agora, o sistema faz com que todo o mundo pague um preço alto: o preço das vidas que morrem pela pandemia. A ignorância humana, que impedia que os seres humanos se organizassem e tomassem para si o seu trabalho e o resultado dele, agora impede também que todos cheguem a um consenso a respeito do que é necessário fazer para que todos vivam.
Autocrítica
O filme, além de criticar de maneira indireta o capitalismo, mostra um enredo em função de criticar os EUA, a sua lógica de geopolítica, o poder que têm o governo americano e as empresas que detém concessão de imprensa. Eles podem criar verdades, mentiras, distorcer a realidade e manipular a forma como a opinião pública vê as coisas. Os estadunidenses são mostrados em dois grupos: os conscientes e os negacionistas. Mas todos são fúteis, todos são incapazes de reagir e obrigar o governo a ajudar-lhes.
Por outro lado, essa autocrítica também é uma forma velada de narcisismo. “Não olhe para cima” não é um filme que mostra o mundo lutando para sobreviver a um evento cósmico de extinção. É um filme sobre os EUA levando o mundo à extinção certa, guiada pela cobiça dos mais ricos e pela ignorância dos mais pobres. Acima de tudo é uma obra que mostra esse ponto de vista estadunidense sobre o mundo: Somos um país de ricos ambiciosos. Nossos pobres são ignorantes, assim como todo o resto do mundo. Esse narcisismo obviamente só leva à destruição. Mas é uma forma míope de enxergar um mundo, mesmo que de modo imaginário.
Alinhavando
O filme, no entanto, deve ser lembrado pelos seus pontos positivos, por sua grande empreitada em criticar o negacionismo, o uso indevido da verdade, o poder destrutivo das fake news. A obra é bem-sucedida em mostrar o preço que se cobra por duvidar da ciência durante o tratamento mundial de uma doença muito grave. O filme também organiza a narração de um modo muito interessante e atraente, embora provoque muito constrangimento. É uma história inteligente, por isso é um afago na inteligência humana, de qualquer jeito.
Toda e qualquer história distópica nos faz olhar para o presente, temer o futuro, avaliar o passado. É assim desde a literatura apocalíptica bíblica, desde Nostradamus, desde as previsões mórbidas que acontecem a tempos espaçados e recorrem em todo fin-de-siécle. O interessante é que não estamos num fim de século, mas já na sua primeira metade. Essa sensação de contemplação ante um fim próximo foi trazida pela pandemia de SARS/COVID-19. E pode ser que se demore para ir embora totalmente, mesmo com a franca retomada da normalidade, após o início da vacinação. Até porque mesmo a clara evidência dos benefícios da prevenção ou da vacinação, apesar de claras, não são o suficiente para que as pessoas se sintam seguras ou mesmo venham a confiar na ciência. Sem a verdade, os saberes não se sustentam.
O filme mostra isso numa escala trágica e dramática e, apesar das críticas que merece, não se furta dessa tarefa de trazer um pouco de luz em tempos meio tenebrosos.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos