Não resisto à ideia de fazer um relato. Não pode ser nunca qualquer tipo de avaliação dessa tragédia, porque ela persiste, resistindo horrorosamente à ciência e ao esforço coletivo dos mais preocupados. Talvez por ter infiltrados em seu favor no nosso meio, ela não vai deixar o planeta tão cedo, pelo menos não como queríamos.
Ando sem tempo para escrever, de fato, mas com tempo de sobra para pensar, por causa de uma breve convalescença. Por sorte, não foi por causa da COVID-19, mas por problemas de saúde já existentes. Nesse momento, sento-me numa cadeira dobrando uma dolorida articulação do quadril que sofre de artrite por gota. Doloridíssima, me deixou desde a semana passada sem poder andar direito, sob dores que desafiam a lógica da compreensão humana. Mas, enfim. Melhora-se como se pode, já tive dias piores. Todos nós tivemos no ano passado por causa da pandemia.
Acompanhei as notícias pela televisão sem muito alarde, sem preocupações maiores em dezembro do ano passado. 2020 começou para mim com desafios muito grandes na saúde e no trabalho, mas com pouca relação com a pandemia, a princípio. Então, como a maioria das pessoas, recebi a notícia dos primeiros casos da doença no Brasil com preocupação. Não se tratava de uma doença fácil, na China, àquela época, as pessoas estavam morrendo, caindo como peças de dominó enfileiradas, umas sobre as outras. Então em março veio um súbito fechamento de tudo. Sou professor. A escola onde eu trabalho se fecha e começamos, apenas dois dias depois, a trabalhar vertiginosamente para atender aos estudantes de modo online.
As coisas foram de mal a pior no trabalho e nunca melhoraram definitivamente. Um ano e oito meses depois do início do fechamento, já com a escola quase totalmente liberada para os estudantes, os prejuízos vêm à tona, o cansaço laboral transborda. Mas não quero reclamar, pois não perdi o emprego. Milhões de desempregados e gente que precisou encarar a informalidade num momento muito difícil, em que as atividades informais também estavam restritas.
Do ponto de vista da saúde, mentalmente, eu degenerei para um estado quase constante de pânico e sentimento de ameaça. Embora trabalhasse quase que exclusivamente de casa, vi as duas pessoas da minha família continuarem suas rotinas obrigadas a isso. Pior ainda era saber que minha mãe, Agente Comunitária de Saúde, foi recrutada para a linha de frente do combate à pandemia. Meu pai, o outro ocupante da casa, trabalhava à noite, mas em situação preocupante, pois ocupava a portaria de uma indústria. O “novo normal” incluia me indignar na frente da TV todo santo dia com as mais absurdas notícias no cenário político e econômico. Enquanto isso, as mortes cresciam e entramos para 2021 com uma falsa e curta esperança de retorno à normalidade, seguidas de um surto de contaminação que levou muita gente conhecida embora. A essa altura eu já tinha descoberto diabetes, em dezembro de 2020. Pisava em ovos com uma comorbidade praticamente fatal, caso eu viesse a pegar a doença. Apesar disso, a doença se aprimorava em matar, levando vidas jovens e saudáveis. Médicos na TV conclamando a população a se cuidar, hospitais lotados. Luto tornado tão banal, que nem chocava mais saber as notícias.
Vi famílias inteiras vitimadas. Dizimadas. Pais e mães amados, jovens com filhos órfãos. Pessoas desesperadas furando as regras sanitárias para ir a festas, beber, cantar. Comportamento de quem, no caos, esperava uma morte iminente. Festas clandestinas pipocando por todo o país: muitos queriam isso antes de morrer e não ter ido uma última vez.
E teve também o lado perturbador e aterrorizante do negacionismo, das irresponsabilidades coletivas. Da culpa. As mortes por COVID-19 aqui aumentaram e com elas o abandono veio, o suicídio, a fome, o desespero existencial, o afundar-se em vícios, a pressão inacreditável das responsabilidades mundanas. Deuses, santos, anjos e entidades fechando os olhos para seus fiéis, alegando a única coisa irremediável a acontecer: a morte.
Agora tudo está como está, longe de estar bem, normalizando-se, mas não de modo seguro o suficiente. Eu me encontro esgotado pelo tanto que trabalhei, senti-me sozinho e abandonado por quem deveria me proteger, por quem recebe de minha mão os impostos que pago.
Deu tudo errado e pode ser que dê de novo se a gente não se cuidar e não cuidar dos outros. Nada ainda acabou para que possamos comer nossos sacrifícios de fim de ano em paz. Todos os comeremos de mãos ensanguentadas. Pelo voto que demos, pelas responsabilidades que deixamos de ter. Sobre nossas consciências acalmadas pela vacinação ridicularmente conduzida pelo governo, chove o sangue dos que morreram sem chance de cura.
É esse o sangue de nossa comunhão adoradora da inércia e do conformismo covarde, submissa a governos mundiais que negociaram a nossa morte, como aqui no Brasil, a um dólar cada.
Sigamos para o fim, e que seja o da pandemia, com muito a lamentar, sem esperanças que aprendamos de fato a viver num mundo melhor, sem a euforia burguesa de consumir, comprar e se alegrar sobre os cadáveres dos que pereceram. Nosso país empobrece a olhos vistos, vaga no oceano da incerteza, sem vela, timoneiro, mas cheio de vidas que ainda devem ser salvas.
Capa: Image by Anemone123 from Pixabay
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos