Lembro-me como se fosse ontem daquele dia. A pior manhã de todas. Eu era novato na escola. Todos me odiavam, eu também não fazia muita questão de gostar de ninguém. Bobeira minha, deveria ter sido mais amigável, mais maduro. Mas vá. Só descobrimos isso depois de muito tempo. Eu sofria várias agressões verbais e algumas físicas na escola, de outros garotos principalmente, mas até mesmo de outras garotas. Eu era a vítima perfeita do que hoje chamam de bullying. Calma. Não vou dizer aqui que eu sofri pouco ou que no meu tempo era melhor, coisa e tal, aquele papo de gente velha chata reclamando da realidade. Não. No meu tempo era bem pior. A gente sofria calada por não ter a quem reclamar. Na verdade, eu cheguei a falar algumas vezes com minha mãe a respeito do quanto aquilo me incomodava. Passei seis anos na mesma escola, todos sabiam quem eu era e os meninos que me odiavam pareciam ter uma espécie de rancor de mais da metade de uma década. Ora por eu ser considerado mais inteligente, ora por eu ser chato mesmo. E eu devia ser chato pra caramba, porque hoje em dia eu sou. Imagina há trinta anos atrás? Mas o principal motivo era eu ser gordo. E ser gordo é sempre culpa sua, e não somente culpa sua, as pessoas precisam te fazer sofrer.
Mas a verdade é que eu estava saturado. Onze anos. Eu era o único com essa idade na sala de aula, a maioria dos alunos do sexto ano tinha mais de doze anos. Todos amadurecendo, bigodinho nascendo, voz rouca, pelos nas pernas, bons no futebol. Até meu colega que era deficiente de um pé era melhor que eu nos esportes. Aos onze, eu era vítima de um valentão. Magro e alto, feio de dar dó, ele passava o dia inteiro me perturbando, perseguindo. Todos os meus colegas se admiravam de minha capacidade de resistir àquilo tudo. Eu mal o respondia, quase nunca falava nada, mas no fundo, queria que ele morresse, isso quando eu não queria matá-lo com minhas próprias mãos.
Tive de aprender a me conter, mesmo num dia que ele saiu da escola me infernizando e me empurrando. A minha vontade era de me virar e destroçá-lo em mil pedaços. Mas moralmente, eu era incapaz de fazer aquilo, mais uma vez eu dava de ombros. Logo o ano se acabou. E tudo explodiu dentro de mim. Cansei. Passei dias reclamando de tudo com minha mãe até que eu finalmente fui transferido para outra escola. Que alívio, tudo melhorara. De um ano a outro, eu não engordara mais, ao contrário, era magro, esguio e mais ágil. Na sala nova, cheia de pessoas das quais esqueci o nome e o rosto da grande maioria, eu era o idiota dos idiotas. Respondia às perguntas retóricas dos professores, irritando a eles e aos alunos deles, eu era o chato, metido, feioso e beiçudo. Beiçudo. Todos me odiavam, e eu era o beiçudo. Ou seja. Começara tudo de novo.
Aquilo virou a nova mania do momento. Nos primeiros meses do ano, eu era o beiçudo chato da sala, o bode expiatório, todos me xingavam, me hostilizavam. O pesadelo do ano passado continuava. Eu só não era mais o gordo. Minha vontade de sumir dali só aumentava, mas havia pouco eu acabara de mudar de escola. Minha mãe não deixaria acontecer mais uma mudança. Então o jeito era eu me conformar. Ou reagir. De saco cheio, estava disposto a me ver livre daquilo de qualquer modo. Eis que surge à porta da sala de aula um dos garotos mais chatos e feios da classe, olha para mim e:
— E aí beiçudo, beiçola, boca de saco, papa-terra?
— Beiçudo é a puta que te pariu, respondi secamente, de modo agressivo e desafiador.
— Você xingou a minha mãe! Não vou brigar agora não, mas mais tarde a gente a gente resolve. Te pego lá fora!
— Você que sabe.
Nisso, um dos colegas que raramente falavam comigo, e quando estava com os outros me chamou no canto e desejou pêsames para mim. Era o cara melhor de briga na escola, batia em todo mundo, até nos meninos mais velhos das turmas superiores. Todos o temiam.
Eu não me importava por fora. Mas por dentro, minha valentia momentânea começava a desmoronar. Eu tinha vocação para tudo, menos para valentão que ganha briga do melhor lutador da escola. Eu estava perdido. O que eu iria fazer? Eu era bom mesmo em ser o idiota, fracote, veadinho, gayzinho, beiçudo e CDF da sala. Outra coisa, não. Jamais tinha incorporado um valentão bom de briga. De repente, o meu dia virou enredo de filme da Sessão da Tarde.
Provavelmente iria perder. Durante o recreio, duas hora e meia depois, todos comentavam que eu iria brigar lá fora, o novato fracote e beiçudo contra o quebra-ossos oficial do colégio. O tempo deveria ter se arrastado, mas não. A manhã passou como um raio. Logo eram onze horas da manhã. Minutos depois, a tal da sirene toca. Todos saindo. Eu não havia prometido brigar com ninguém, tomei meu caminho para casa. Ele, seguiu-me, mesmo quando os seus colegas pediram para que ele desistisse daquilo.
Mas nada feria mais a honra do que chamar a mãe de puta.
Logo a tal mãezinha maravilhosa do meu colega. Ele veio por trás de mim e me deu uma gravata, eu me desvencilhei a tempo de levar um senhor murro na boca do qual eu nunca me esqueci. A sensação até hoje parece estar aqui nos meus lábios. Depois do murro, eu me embolei com ele e levei algumas enforcadas enquanto tentava evitar a distância que faria ele me dar mais golpes como o anterior. Logo chegou a turma do deixa disso. Separou-nos um colega que também era amigo de meus tios maternos. Antes que eu chegasse em casa, a notícia da briga na escola já tinha chegado. E olha que naquela época, ninguém tinha celular, telefone fixo era um luxo que eu não tinha.
Minha mãe me deu um sermão longo, não me bateu, mas eu talvez preferisse. Não me lembro mais do teor da conversa, só sei que sai dela decidido a pedir perdão por minha grosseria. Mesmo já tento ganhado a recompensa por ela: o bendito e dolorido murro na boca. Então, no outro dia, o chato do menino entra pela porta e eu o chamo a pedir desculpas, pelo que ele imediatamente me perdoa. A sua fala logo em seguida foi surpreendente. Ele me convidara para fazer parte do time de vôlei, e eu passei a ser parte da turma dos caras legais da escola. O problema foi só aguentar mais dois anos com os caras me chamando de beiçudo e veado, mas tudo bem. Anos depois me chamariam também de doido, mas isso é uma outra história.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos