Era sábado, 03 de outubro de 1970. Estava no ventre de minha mãe ainda, naquele lugar quente e acolhedor a receber sua seiva, minha vida através da sua. Já era noite. A lua estava crescente, mas ainda bem no comecinho e não se mostrava plena com seu vestido prateado, suspensa em um manto negro e salpicado de estrelas. Não, ela se mantinha quase invisível e cresceria pouco a pouco nas noites daquele outubro de 1970.
Sentia, nestes meses que ali permaneci, que foram meses difíceis, sofridos, de luta. Que a dividiram entre o seu próprio trabalho e as idas à churrascaria. Minha mãe estava magra, mas ainda conservava em si sua beleza, o escuro de seus negros cabelos cacheados iam até um pouco além de seus alvos e delicados ombros e quase os emolduravam.
Suas sobrancelhas bem feitas e alongadas ajustavam-se perfeitamente aos seus olhos castanhos bem claro, cor de mel; minha mãe olhava pensativa para sua barriga, que naquela gravidez não crescera muito. Havia em seu olhar força, delicadeza, resiliência. Suas mãos muito delicadas tocavam sua barriga como se percebessem que aquele seria o último dia que me carregaria em seu ventre, mas me teria em seus braços.
Meu pai e minha tia, Luiza, a acompanhavam. Chegaram ao hospital. A falta de contrações ou qualquer dor, deixavam-na com a dúvida se viria ao mundo realmente naquele dia. Gostaria de contar que meu nascimento foi como naquelas cenas de filmes que vemos onde a mãe passa por todo trabalho de parto e após grande esforço o bebê finalmente dá seu sinal de vida, com um choro portentoso de quem sentiu o impacto do mundo, é colocado nos braços da mãe, que chora de felicidade por ter trazido ao mundo seu filho amado e agora sente pela primeira vez seu calor. Mas o existir, singular e único, traz para cada um, um enredo, uma narrativa, um conto próprio. Não havia qualquer sinal de dor e contração.
Finalmente veio a primeira e única, cinco minutos apenas. Minha mãe se dirigiu ao quarto, recebeu uma anestesia e dormiu. Nasci. Minha tia assistia a cena e pôde ver a enfermeira pegar-me e colocar nos braços de minha mãe adormecida. Meu pai, aquele homem rude, embrutecido, que tantas e tantas vezes deixara sair de si uma fera enjaulada e perigosa, nesse momento se enchera de ternura, beijava a testa de sua mulher adormecida e de seu filho que acabara de chegar ao mundo. Minha tia, comovida pela cena percebia que aquela mulher não via seu quarto filho chegar, mas sabia que ela daria a vida por todos eles para protege-los e amá-los; que trazia em si delicadeza, mas era uma guerreira e os protegeria sempre.
Horas depois, agora acordada segurava-me em seus braços, um bebê comprido e magro, com cabelos escuros que se tornaria cacheados como os seus. Com uma mãozinha muito pequenina e frágil tocava o seio de minha ao receber seu leite e podia ver seu sorriso, de uma doçura e alegria que, anos depois me fizeram firmá-lo na lembrança até hoje.
Meu pai em pé olhou para minha mãe e disse: o menino, Helena, vai se chamar João.
Minha mãe consentiu, como soía acontecer com as esposas de sua geração que concordavam com seus maridos. Mas no íntimo de seu ser alegrava-se porque sabia que João significa Deus é gracioso. Helena olhou para Antônio, depois acariciou-me com ternura, olhando-me sorriu e disse:
Sim, o menino vai se chamar João.