Ninguém nunca se preocupa com detalhes da vida do Super-Homem, eu sim. Como será viver no meio de seres tão inferiores que podem morrer ao seu menor espirro? Quão difícil deve ser perder a concentração por um instante e pisar no freio do carro e o pé atravessar até o motor. O pior ainda seria ter de usar carro, quando não faz o menor sentido, já que pode voar na velocidade da luz. Fica mais difícil ainda saber que, durante o sono, ele pode rolar sobre a Lois Lane e matá-la sufocada. Ah, mas ele tem superaudição. Sim, mas se tiver também sono profundo? Complica.
Fico pensando no quanto ele precisa ser paciente até aprender a se acostumar com os seres humanos barulhentos, tendo superaudição. Seu início de carreira deve ter sido marcado por inúmeras vezes em que foi salvar do perigo uma pessoa escandalosa, uma tia velha vendo seus sobrinhos netos recém-nascidos ou mesmo gritando por causa de uma simples barata. Não deve ser fácil. Aqui no Brasil, enquanto não aprendesse o significado da expressão iti malia, gritada toda vez que um gatinho aparece na tela de um computador ou celular, ele não teria paz.
E voar, que parece ser uma solução para tudo? Mas pensemos nisso nesse tempo de tráfego aéreo intenso? Enquanto ele voa para salvar o mundo, deixa enlouquecidos radares e controladores de voo, desviando rotas, provocando atrasos ou até mesmo acidentes. Acima da estratosfera, há os satélites dos quais precisamos. Imagina deixar meio continente sem sinal de TV ou de internet móvel porque na luta com um supervilão, vários satélites foram destruídos?
E os vidros quebrados toda vez que ele quebra a barreira do som voando? Ou dando aqueles monumentais socos? Imagina o gasto de dinheiro público para reconstruir cidades arrasadas depois de uma batalha contra alienígenas ou psicopatas aqui mesmo do planeta?
Ser o Super-Homem não deve ser fácil, em teoria. Se vivesse uma vida real, muita coisa deve ser explicada. De que material é feita sua lâmina de barbear para conseguir aquele rosto tão liso e tão marcante? Essa lâmina cortaria sua pele? Se fizerem um faca do metal da sua lâmina de barbear, ele pode ser esfaqueado? Será que os pentes não se quebram no seu cabelo quando embaraçam? Como é que a Lois Lane espreme uma espinha nas costas dele se ele é invulnerável? E soltar pum? E uma diarreia no vaso sanitário? Isso não provocaria uma explosão no prédio inteiro dele? Se ele cair da cama, quebra o piso? E se roer a unha e cuspir o pedaço, mata alguém? O xixi dele abre um buraco no mictório?
E se não, como é que ele se controla?
Não é fácil pensar na possibilidade de um mundo em que o Super-Homem exista, talvez porque ele não exista de verdade. Enquanto outros ficariam pensando no quanto ele poderia ajudar a salvar o mundo das guerras, da peste, da fome, eu estou só pensando no quanto deve ser difícil ser ele mesmo. Imagina os momentos de intimidade, tentar não assassinar a humana com que ele se casou a cada abraço, beijo ou coisa mais íntima.
Sei não.
Mas OK. Ele não existe mesmo, não temos que perder tempo com isso. Pensar sobre o Super-Homem, depois de adulto, tornou-me uma pessoa triste. Não por invejar seus poderes. Mas porque não dá para existir num mundo ilógico como o dele. Um dia, falando nisso, nesse assunto específico, alguém veio com uma justificativa o mais verossímil o possível. Aquela que explica o Super-Homem, assim como outros tantos heróis impossíveis, convivem com seres humanos normais porque eles teriam controle absoluto de seus corpos, podendo segurar gentilmente um copo de vidro ou dobrar uma viga de aço com as mãos.
Mas isso continuaria o drama de se ter que explicar como o Super-Homem voa e atravessa meio continente com a Lois Lane no colo. Ela é humana. Não pode ir à estratosfera sem um ambiente pressurizado, senão morreria asfixiada ou a água do seu corpo evaporaria pela ausência de pressão. Ela não poderia suportar o atrito com o ar em sua pele, de fato seria dilacerada, a não ser que Super-Homem aceitasse voar em velocidade baixa, altitude baixa, o que também teria seus inconvenientes. Imagina Lois, linda como ela costuma ser, perdendo um olho por causa da colisão entre ela e um besouro?
Eu acho que pensar sobre isso me faz identificar a mim mesmo com a Lois Lane. Não por sua paixão por extraterrestes com cabelo oleoso e olhar de raio laser e raios X. Mas pelo fato que eu me reconheço como esse ser impossível de lidar com alguém tão mais poderoso que ela, divino, no caso. E isso é algo que eu posso interpretar aqui, nessa realidade. Eu sou o tipo frágil de ser humano que morre ao contato com o poder em excesso, o tipo frágil que não tem condições de alçar seu desejo a uma vontade de potência e modificar seus valores e ser SUPER. De fato, todos nós, seres reais, somos assim. Lois Lanes morrendo esmagadas pelo abraço de um Super-Homem.
Isso, claro, retomando a Nietzsche. Pensando nisso, fica quase impossível não comparar seu übermensch com o Super-Homem da DC Comics. De fato, é uma comparação indevida. O super-homem, ou além-homem de Nietzsche, de fato é um ser que nasce do esforço de superação de uma humanidade deturpada pela moral vigente. O Super-Homem dos quadrinhos e filmes, ao contrário, ele encarna uma espécie de super-subserviente. Alguém pronto para reafirmar todos os valores de uma nação que o acolhe, e não guia ninguém a lugar nenhum, mas atua como uma espécie de Cristo meio ressuscitado, meio incompleto. Mas muito mais poderoso que qualquer Cristo algum dia já foi.
Longe de ser um ideal daquilo que Nietzsche quisera para seu modelo de filosofia, o Homem de Aço é impossível por esse ponto de vista também. Ele não só pode se assentar logicamente sobre um vaso sanitário. Ele também não pode se assentar sobre a lógica das coisas, ele não pode representar o melhor de nossos valores.
O Super-Homem não pode representar um verdadeiro herói.
Por ter chegado muito cedo ao Planeta Terra e ter sido criado como um cidadão invisível da zona rural do Kansas, ele é uma espécie de Average Joe que se descobre com super-poderes e parte para uma missão de salvar o mundo com sua força física. Mas ele não questiona nada que importa naquele momento. Super-Homem não é herói. Jamais será. Ele é o guardião do capitalismo, dos governos opressores, da paz em que as nações mais fortes oprimem as mais fracas. Nesse ponto, o Super-Homem é tipo um deus cristão. Só que menos onipotente, mais local. Ele é tudo, menos um herói.
Ele é DEUS EX MACHINA, arbitrário, único. O mundo depende somente dele. E divino, como é, torna-se tão essencial que precisa ressurgir dos mortos para que o planeta se salve mais uma vez, haja vista que ninguém mais num universo infinito poderia se prestar a esse papel.
Se por um lado, esse tipo de “herói” conforta, por outro ele perverte. Por ser um deus, por permitir que sua existência se compare à existência humana, mostrando-se como modelo de transcendência sem jamais sê-lo. Super-Homens, como os dos quadrinhos e filmes, Cristos e Santos são assim. Eles mancham a imagem de Héracles, Teseus e Jasões. Apesar de sua ascendência mística, esses heróis eram humanos o suficiente para que nos identificássemos. Suas jornadas refletiam nossas jornadas terrenas. Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris. Já Cristo e o Super-Homem jamais refletem a jornada humana. São fantásticos, vêm de outro mundo, são criados como seres humanos e logo se tornam seres sublimes, cujo toque nos destrói, cujo olhar nos transpassa, nos queima. Seu sopro nos congela, nos arremete a distâncias enormes.
O Super-Homem não é pó, e ao pó ele não precisa, jamais precisaria retornar. Assim como os deuses que igualmente criamos para explicar o que temos preguiça de entender.
IMAGEM DA CAPA: Superman, personificado por Christopher Reeve. Foto: Warner / NOW (Divulgação).
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos