Moral à brasileira

Não existe pecado do lado de baixo do Equador. Essa máxima expressava uma crença sobre o Brasil Colônia muito comum, no século XVII e XVIII, anteriores ao processo histórico que transformou a colônia portuguesa num protótipo de país e nação soberana. Algo que se concretizou, em parte, com a independência. Mas isso depois de três séculos dessa concepção equivocada sobre a colônia. Um lugar livre onde todos podem tudo, inclusive pecar.

De acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias, a civilização sempre foi a fonte de valores, noções de classe, comportamento e parâmetros individuais de comportamento. Por esse motivo, na colônia não existia a ordem, a fé e o comportamento esperado a todos os cristãos. O padrão civilizado de comportamento, incluindo nisso, a expressão desejada da sexualidade, jamais viria para a colônia por iniciativa da metrópole. E isso era um claro projeto de poder. A aparente confusão da colônia, onde se podia muito era necessária para a gestão nefasta da vida. Escravos, indígenas, degredados e outros excluídos não mereciam exatamente um esforço civilizatório real porque suas vidas valiam o que podiam produzir enquanto colonizados. Essa história colonial do país é que explica a forma como lidamos com corpo e sexualidade.

Essa era a licenciosidade do passado. Ultra æquinoxialem non peccari. A máxima do século XVI, repetida por Sérgio Buarque de Holanda, por seu filho, Chico Buarque, numa peça e também por Ney Matogrosso, numa canção muito famosa. Isso, de fato revela uma visão machista e colonizada da realidade. A licenciosidade e permissividade da colônia, de fato era um desrespeito profundo à vida. Aqui não era um paraíso do prazer, mas um lugar indigno de ser civilizado. Por isso viajantes poderiam ter aqui experiências que jamais seria permitido no modo civilizado e cristianizado de ser da metrópole.

Aqui era lugar de bigamia, poligamia, padres com mulheres e filhos, senhores de escravos com haréns em suas senzalas e muitos filhos ilegítimos. Mas isso tudo era o império de um machismo reinante, que se apoiava no pior da civilização europeia, na sua gestão da morte, base da exploração capitalista e colonial.

De certa forma, ainda temos isso, ainda pensamos assim, ainda nos oferecemos assim à ex-metrópole, aos Estados Unidos, aos ricaços que vêm nos ver atrás de turismo sexual, de natureza exuberante ou mesmo de uma cultura exótica como mostrou Malinowski em seus estudos no início do século XX. Nós ainda somos exóticos aos olhos alheios.

Agora nós, brasileiros, cremos que somos resultado de um processo harmônico de autocivilização. Algo endógeno, criado a partir de nossa independência como nação no século XIX. Um mito criado pelos nossos governantes, ao logo de nossa curta história, para mostrar que agregamos o melhor da cultura negra, que resistiu braviamente à escravidão e à diáspora, agregamos o melhor da cultura indígena e temos o brilho e a luz de cristo e da civilização europeia resplandecendo em nós.

Triste mentira. Triste demência. De fato, carregamos o pior do europeu. O machismo, o chauvinismo e continuamos a execrar indígenas e afrodescendentes. Isso organiza o nosso comportamento individual para a triste contradição que se apresenta: Nossa relação com o corpo e o sexo, nossa contradição em sermos um povo sensual e bonito, mas ainda ligado a questões de repressão cristã, burguesa e higienista.

Somos um povo que fala de sexo nas letras de música e se contradiz condenando mulheres no exercício livre de sua sexualidade. Somos a fantasia predileta de um turista europeu que depois do final de semana vai-se embora. Mas de fato, temos muita dificuldade em compreender como se libertar de imposições culturais e religiosas advindas da colonização, uma vez que não temos vivência nas culturas oprimidas o suficiente. Não a maioria de nós. Vivemos de alimentar aquilo que execramos. Alimentamos o machismo disfarçado de conduta sexual cristã. Somos um pais que alimenta a pornografia e a prostituição quando os homens abusam e as mulheres são silenciadas por violência ou medo de difamação. Mas não temos a coragem da verdade, porque queremos o fim do abuso sem a libertação do corpo feminino. Ou seja, somos profundamente contraditórios. O sexo que circula na nossa cultura é a fantasia de uma burguesia hipócrita. Mas acima de tudo, é tudo que a nossa parcela masculina mais quer.

Podemos perceber isso em muitas manifestações das artes e na visão objetificada do corpo feminino. Enquanto escrevia esse texto, uma dupla sertaneja cantava no rádio ligado uma canção em que o eu-lírico pede a uma mulher que engane seu companheiro para ficar com ele por uma noite. A manifestação cultural em questão não é marginalizada, como o funk que fala de maneira aberta e ousada sobre o sexo, não é feminina, como Danny Bond que canta uma canção entendida como “pornográfica” para exaltar sua vagina.

Mas ainda assim, a letra de música, da Dupla Israel e Rodolffo com participação de Wesley Safadão, traz um palavrão, ainda que seja um monossílabo: “Faz amor comigo, só hoje / Se ele te ligar, cê faz cu doce”. Muitos acharam a música ousada, inadequada. Mas ela vai passando, vira sucesso. O verso com cu está num comercial, no horário nobre, com a propaganda do álbum dos artistas. Vamos tentar fazer um exercício prático de reconhecimento de condições materiais para a enunciação de coisas com sentido, lógica e aceitabilidade. Se fosse uma mulher que se chamasse Safadona. Não que isso seja impossível, para mim não é. E se a música dela falasse, “cu”, seria mais aceita ou menos? E se fosse a Marília Mendonça?

Mas peguemos exemplos de mulheres que cantam música marginal com letras recheadas de sexo: Danny Bond, Valesca Popozuda, Tati, Quebra-Barraco. Por mais chamativos que os nomes sejam, a explicitude de “Safadona” não está presente em nenhum deles de maneira clara. Mas está no nome artísticos de um de nossos mais bem-sucedidos artistas populares. É homem. É branco. E hoje é podre de rico. Ele possui uma prerrogativa que muitas mulheres e gays não têm, porque eles podem a qualquer momento dizer numa canção para uma mulher fazer cu doce para seu namorado, a fim de transar com ela.

Isso tudo precisa mudar. Sim. Mas não uma mudança imposta por um higienismo forçado. As mudanças culturais precisam de esforços coletivos de mudança de ação social.

Não é interessante também que isso tudo vire patologia. Assim como fizeram com a masturbação e posteriormente com a apreciação individual da pornografia no mundo ocidental. Adoecemos aquilo que não queremos resolver objetivamente. Essa é uma regra de ouro dos saberes humanos envolvidos com o poder. Depois de um tempo, pode-se abandonar a ideia de algo seja patológico, porque não se precisa mais temer um comportamento individual ou coletivo.

Não, vamos evitar isso. Precisamos de consciência, educação e também um pouco de leveza. Ninguém precisa levar a sério uma letra de música por muito tempo. Mas isso pode virar motivo para conversas, para orientar filhos, estudantes, pessoas com quem nos importamos. O mundo não é individual, é coletivo. Muitas coisas não se combatem com remédio e terapia, quando de fato sua origem é uma configuração social mais profunda e arraigada. Pensemos.

A nossa condição de ex-colônia nos faz ter relações profundamente contraditórias com valores que estão em circulação. De fato, há conflitos de classe e geração. Há valores que estão, nesse momento, sendo desacreditados por uma parte da burguesia, mas que podem ter o interesse por eles reacendido futuramente. O suporte dos valores em curso à política e às relações de poder ditam que valores sobem ou descem na escala de aceitação social. Isso precisa ser visto de modo crítico.

Pensemos mais ainda.

Imagem de Tumisu por Pixabay, na capa do artigo.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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