Na semana passada, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou a 15ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que compila e analisa dados oficiais sobre a violência no Brasil em 2020. Entre as informações trazidas pela publicação, que revela um aumento no número de homicídios no ano passado em relação a 2019, uma das mais assustadoras é o crescimento dos crimes e agressões contra as pessoas LGBTQIA+: o número de mortes violentas aumentou 24,7%, e o número de agressões 20,9%.
Embora já bastante graves em si, esses dados tornam-se ainda mais alarmantes se levarmos em conta que a violência contra pessoas LGBTQIA+ é reconhecidamente subnotificada. Alguns Estados brasileiros nem tratam esses crimes como uma categoria específica. Em termos absolutos, o número de mortes relacionados à orientação sexual e identidade de gênero é muito maior do que o registrado pelo anuário, de acordo com levantamentos realizados por outras organizações, como o Grupo Gay da Bahia.
De qualquer forma, os dados revelados pelo anuário vêm confirmar o que já sabemos: o Brasil é um país perigoso para a população LGBTQIA+. Somos líderes mundiais em assassinatos de travestis e transgêneros. E essa situação só tem piorado recentemente. Poucos dias depois da celebração do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, em 28 de junho, essa notícia fortalece a convicção de que a luta contra a exclusão e a discriminação contra as pessoas LGBTQIA+ permanece mais necessária e pertinente do que nunca.
Quando soube das informações reunidas e divulgadas pelo anuário, lembrei-me do escritor francês Édouard Louis que, em seu livro “Quem matou meu pai?”, cita a intelectual norte-americana Ruth Gilmore e sua definição do racismo como “a exposição de algumas populações à morte prematura”. Edouard Louis observa que essa definição também pode aplicar-se à “dominação masculina, ao ódio da homossexualidade e dos transgêneros, à dominação de classe, a todos os fenômenos de opressão social e política”. E conclui dizendo que a política é “a distinção entre populações que tem sua vida sustentada, encorajada, protegida, e população expostas à morte, à perseguição, ao crime.”
Pensei também em Judith Butler e na sua reflexão sobre a vida precária, na qual, em linhas gerais, busca analisar como, com base na premissa de que toda vida é precária, constrói-se social e politicamente o enquadramento a partir do qual certas vidas (ou a vida de certos grupos sociais) são consideradas dignas de ser vividas e, dessa forma, protegidas e estimuladas, enquanto outras não chegam a ser consideradas vidas no sentido pleno e não são, assim, nem dignas de proteção ou cuidado nem “passíveis de luto” (estou simplificando muito um raciocínio complexo elaborado ao longo de vários textos).
Embora a reflexão de Butler tenha sido desencadeada por uma situação de guerra vivida pelos Estados Unidos no seguimento dos atentados de 11 de setembro de 2001 e na consequente “desumanização” daqueles que eram percebidos como os inimigos, creio que suas ideias podem, como as de Ruth Gilmore, serem ampliadas e transpostas para outros contextos nos quais também se percebe uma divisão socialmente construída entre quem merece e quem não merece viver.
O aumento da violência contra as pessoas LGBTQIA+ não é um fenômeno isolado. Há quase 40 anos, na primeira metade da década de 1980, Caetano Veloso já nos dizia, em “Podres Poderes”, que “morrer e matar de fome, de raiva e de sede são tantas vezes gestos naturais”. A sociedade brasileira sempre foi marcada pela violência, em que pese nossa insistência em cultivar uma auto-imagem de um povo pacífico e festeiro que, sem ser exatamente falsa, não reflete toda a realidade. Talvez nossa singularidade enquanto nação esteja justamente nesse dilema nunca resolvido (e quem sabe nunca adequadamente assumido) entre uma dinâmica cultural que favorece o encontro e as trocas e a rigidez de uma estrutura social que divide, exclui e discrimina.
De qualquer forma, o fato é que parecemos naturalizar cada vez mais a violência e a morte. Da mesma maneira como a morte diária e em muitos casos evitável de centenas de pessoas pelo Covid-19, os crimes de ódio são recebidos com relativa indiferença e resignação. Parece haver uma dificuldade muito grande em perceber essas mortes, para além da tragédia individual que representam, como um efeito de estruturas sociais e mentais que precisam ser combatidas e desmontadas por políticas públicas que não podem se limitar ao campo da segurança, mas que devem abarcar também a educação, a cultura, a saúde e o trabalho.
Isso tudo não é novidade, mas parece evidente que, nos últimos anos, essa situação adquiriu novos contornos.
Quando se iniciou o processo de redemocratização que encerrou os tristes anos da ditadura militar, começamos a viver, ainda que aos trancos e barrancos, um progressivo processo de inclusão e de ampliação de possibilidades para grupos e parcelas da população. Mesmo incompleto e insuficiente, esse processo deu visibilidade e alguma voz a esses grupos historicamente excluídos e discriminados, mas também trouxe à tona questões estruturais da nossa formação social, como o racismo, o machismo e a homofobia, rompendo com uma lógica tradicional do “cada macaco no seu galho”.
Como era talvez de se esperar, na primeira oportunidade as forças resistentes a qualquer tipo de inclusão se articularam para retomar o controle da situação e instaurar um projeto restaurador de uma ordem pré-iluminista.
Não cabe aqui analisar como se deu esse processo de restauração conservadora. Mas creio ser necessário reconhecer que a caixa de Pandora que foi aberta nos últimos anos não é algo estranho ou externo à nossa cultura (por mais que fatores externos possam de fato ter favorecido ou até estimulado o processo em si). O horror que vivemos hoje é a expressão do que eu definiria como uma espécie de sombra dessa mesma cultura, com a qual sempre convivemos e que precisamos enfrentar se quisermos ter uma chance de realizarmos o nosso potencial enquanto projeto coletivo de nação (que não é um destino manifesto nem uma essência atemporal, mas uma realidade histórica marcada por tensões e disputas). Quem sabe o Brasil precise mais de terapeutas do que de salvadores da pátria.
Isso não significa naturalmente que temos que ter “empatia” com aqueles que, de modo direto ou indireto, promovem a morte e a destruição. E sim que devemos tentar compreender as forças e os processos em sua profundidade e em sua “longa duração”, para além da frenética sucessão de peripécias e notícias alimentada pela imprensa diária e das redes sociais, que vivem disso.
Acabei me afastando bastante do meu tema inicial. Ou talvez não. A violência contra as pessoas LGBTQIA+ não pode ser pensada fora do contexto mais amplo onde ela se insere. Assim como os negros, as mulheres, os indígenas e os miseráveis, as pessoas LGBTQIA+ pertencem ao imenso grupo de excluídos exposto à morte prematura e cujas vidas parecem não ter o mesmo valor do que outras. Paira sobre essas pessoas uma ameaça permanente e se exerce sobre elas, ainda que informalmente, uma licença para matar que pode ser posta em prática a qualquer momento. Pois talvez sua simples existência coloque em risco a legitimidade de um sistema de valores e práticas baseado na estrita demarcação dos gêneros e dos papéis sexuais. E sua morte ofereça a oportunidade de reafirmação desses valores e práticas.
Até a próxima!
PS – Para ilustrar a coluna de hoje, escolhi a “Balada de Gisberta”, canção em homenagem à trangênero brasileira Gisberta Salce Júnior, assassinada na cidade do Porto, em Portugal, em 2006, na voz de Maria Bethânia; “Podres Poderes”, com Caetano Veloso; e “Mal Necessário”, de Mauro Kwitko, na gravação de Ney Matogrosso.
Respostas de 2
Parece-me que uma faceta decorre da outra, Paulo: como “não existe Pecado do lado debaixo do Equador” exceto na cabeça dos pecadores, a violência é consequência de uma necessidade de conter a entropia. Por isso, sempre me pareceu que estas populações estavam sendo “promovidas” a alvos preferências de ações disciplinantes: daí que eu chame de Coordenadoria da Adversidade Sexual a tal Coordenadoria da Diversidade Sexual…
Sim, há uma relação entre a visibilidade e a violência. Mas creio que é a violência e o impulso violento que devem ser enfrentados, e não a visibilidade… Pois a violência continuará a existir mesmo sem a visibilidade. Por outro lado, dar visibilidade à violência é uma forma de combatê-la.