Em meus trabalhos as animações, séries e quadrinhos estão presentes. É por meio destes materiais que proponho algumas reflexões sobre a contemporaneidade. Um dos muitos desafios em abordar as atuais mídias, no intuito de entender as questões políticas, sociais, de gênero, é compreender a obra em si. Ou seja, ao debater sobre as peripécias do Batman, é preciso escolher o universo – ou multiverso – além de escolher a mídia (filme, animação, game, seriado) para extrair dali entendimentos e possíveis reflexões.
São desafios metodológicos que exigem leitura e releitura não só da literatura sobre o assunto, mas principalmente sobre o universo selecionado. O nosso bate papo de hoje não será sobre as questões de método. Mas, sobre uma pergunta feita após análise de imagem. Em palestra, ao questionar o comportamento dos personagens nas sequências do universo DC filmes, as atitudes do Superman me chamaram a atenção. Em linhas gerais, e muito diferente das versões fílmicas anteriores, o kriptoniano, na versão atual, é infantil (tem dificuldade de entender que está sendo manipulado); é vingativo (por causa de uma cerveja destrói um caminhão); é ignorante (em uma luta acha que matar é a única solução). Por causa disso, o conhecimento oferecido por seu pai, depois de morto, parece não ter sido aproveitado.
Entre outros aspectos, isso significaria dizer que nosso herói age e pensa como um humano, reproduz os defeitos que nós, os mortais, possuímos, destituindo-se, então, da condição de herói. Não é herói, é apenas um cara superpoderoso com roupas coloridas, que pode fazer o que quiser, e, dependendo do seu estado de espírito, poderemos ter cidades inteiras destruídas até ele conseguir proteger quem ama. Ou seja, a ética oferecida pelo conhecimento de seu planeta natal foi evaporada.
Esta reflexão gerou um questionamento indignado: Se ele não é o herói, então, quem vai nos salvar? Proponho pensar primeiro na pergunta. Podemos inferir sobre nossa constante necessidade de depender de heróis, salvadores, mitos, que precisam resolver nossos próprios problemas. Isso é interessante. Primeiramente, esta visão de mundo é fortemente marcada pelo ideal judaico-cristão de salvador, o qual vem para nos proteger das mazelas que queremos acreditar que não somos responsáveis.
Em segundo, querer acreditar que sempre teríamos alguém, e geralmente um homem, para nos proteger atribuiria ao “mito” uma condição de poder que supera em muito a força física: a capacidade de decidir por nós. Mitos podem usurpar o poder, destruir nossa sociedade e aplicar o autoritarismo, como foi o caso do próprio Superman, Trump e Bolsonaro. Em terceiro lugar, me chamou a atenção a frustração no rosto de quem proferiu a pergunta, tendo que assistir à destruição da imagem cristalizada de seu herói. Da mesma forma vi uma expressão de abandono e solidão: quem vai me salvar?
Isso diz muito sobre o nível de descrença que, muitas vezes, temos em nós mesmos. Os adolescentes estão crescendo acreditando que pai ou mãe vive por 300 anos! Será que sempre teremos alguém para resolver nossos problemas? Nós, adultos, sabemos que longe disso, pois a vida não funciona assim. Na verdade, nem nós mesmos conseguimos resolver nossos próprios problemas – mas, isso será assunto para outra conversa.
Respondi: Você se salva! Por que precisaríamos de heróis ou mitos? Não estaríamos atribuindo excesso de poder de decisão para terceiros. Seria isso positivo? Em primeiro lugar, precisamos ser mais prudentes, como afirmou Platão, refletindo sobre as possíveis consequências de nossas atitudes. Em segundo lugar, precisamos aceitar os resultados de nossas imposições, erros, caprichos e interesses – adultos fazem isso. Por fim, quem lucra com a crença de que precisamos de alguém que decida por nós, seja no aspecto social, político, econômico e jurídico?
As superproduções milionárias contam histórias maravilhas, fazem o bem parecer mal, e vice-versa. Porém, nós precisamos nos questionar até que ponto os atos dos heróis são inquestionáveis, e, quais as consequências de milhares de crianças e adolescentes, mundo afora, reproduzirem estes comportamentos. Quem você pode matar em nomes dos seus sentimentos? Se sentir humilhado te dá autoridade para destruir patrimônios? Essas reflexões jusfilosóficas são mais que necessárias. Ainda mais em meio a produções fílmicas nas quais o homem de aço, o milionário de Gothan, a princesa da Ilha paraíso, tem ao seu lado o que a maioria não possui, e não estou me referindo a força física, mas, ao dinheiro, herança e cor da pele. Vamos pensar um pouco mais sobre isso.