Amor

O amor líquido de Bauman anda meio no estado gasoso, quase sumindo no meio da tristeza toda que temos sentido. Mas o que é amor? É um sentimento de afetividade muito intenso, originado em nossas relações sociais ou ainda por laços de consanguinidade. Por outro lado, o amor pode ser uma atração e afetividade muito forte, ligadas ao desejo sexual. Por isso, podemos amar muita coisa, de diversas formas, seres reais ou imaginários. O ser humano nasceu para amar, há inclusive aqueles que amam quem os odeia ou agride. Amar não tem limites. Embora a gente use o verbo amar no sentido de “gostar”, influência direta do Latim, mãe do Português.

Amor, por isso, é uma palavra complicada. Ela não pode ser limitada a um tipo só de afeição e não somente a um tipo de prática envolvendo desejo pelas coisas ou pessoas. Amor é algo muito plural, surpreendente, e embora ligado às nossas relações sociais, não há padrão que o amor siga por muito tempo. Sempre se é possível amar de uma maneira diferente.

Amar também pode ser desafiador, no sentido de que se perde fácil o controle sobre o que se sente. Muitos sujeitos relatam não conseguir deixar de sentir amor depois de decepções, frustrações ou tragédias. O amor, que sempre é visto como algo bom, positivo, de repente se torna uma porta de entrada para o abuso e a violência. Mas aí começam outros sentimentos que são descritos pela ciência psicológica. E isso não é amor, dizem. Mas vai explicar para alguém que o que ele sente deixou de ser amor e passou a ser dependência psicológica… Nem sempre dá certo.

Na minha opinião, usamos um vocábulo só para definir diferentes tipos de sentimentos e práticas da economia do prazer e das emoções. O vocábulo “amor” é uma delas. O que uma mãe sente pelo filho, ou o que sentimos por nosso animal de estimação, ou por quem escolhemos viver junto ou ter uma relação pode ser chamado de amor. Amamos comida, amamos hábitos, amamos livros. Amamos entes imaginários, como deuses, santos e anjos. Amar é, por isso, apegar-se a seres e ideias de maneira a associá-los a um conforto que eles produzem no nosso emocional ou intelectual. Amar é um tipo de dependência, mesmo que não possa ser considerada grave, o tempo todo.

Amor é esse laço que une, mesmo que não seja exatamente a mesma coisa em todas as instâncias que surge. O amor é atravessado horizontalmente pela posse. Pela dependência. E por isso ele produz dor. E infelizmente degenera em outras formas de relação e sentimentos. Mas continuamos a nomear isso amor, portanto, a sensação psicológica é que as coisas não mudam. Posse é um lado perverso do amor, diferente do que foi apresentado antes. Posse e dependência são facilmente confundíveis com qualquer outro tipo de sentimento.

Até que o amor acaba. E muitos olham para esse evento de maneiras diversas. Mas geralmente há uma dificuldade muito grande de se entender que o amor, assim, como chamamos, é um sentimento com vários estágios. E que a vida que continua pode levar isso ao fim. Às vezes em dias, semanas, meses. Às vezes em anos.

O importante é que o mundo passou, em algum momento da nossa história, a ser um lugar onde o amor era o sentimento-piloto da coesão social. A possibilidade de se chamar de “amor” o sentimento de posse-dependência-atração sexual que unia as pessoas trouxe possibilidades quase infinitas para as estratégias de gestão social após o Iluminismo. Estamos falando de Europa.

Imagem de silviarita por Pixabay

Aqui na América do Sul, éramos colônia. Não sei como os índios amavam em sua intimidade. Qualquer relato dessa prática social, da época da colonização, mostrava preconceito dos brancos da metrópole. Mas fora isso, sabíamos que, além do amor por si e pelo outro, os indígenas tinham um profundo amor à natureza e não concebiam a ideia de conviver sem harmonia com ela. Isso, claramente, os europeus silenciaram. Assim como silenciaram o amor que veio com os africanos da diáspora. Escravizadas, famílias inteiras se dissolviam para servir aos interesses dos invasores da América.

Isso é típico da Europa, para onde nós, colonizados estultos olhamos em busca de padrões e horizontes para nossos amores. Para eles, o amor era uma técnica de coesão social, base do núcleo familiar monogâmico, peça-chave na produção de mão-de-obra para o desenvolvimento do capitalismo industrial. Isso mesmo, os europeus industrializaram o amor em seu próprio terreno. Não é novidade que o capitalismo e suas crueldades tenha sido testado in loco, isso já sabemos, vide o nazi-fascismo. A colonização, por sua vez, inibia o amor em suas formas, em parte pela imposição da moral judaico-cristã a povos que não tinham a mesma lógica de compreensão do que fosse espiritual.

No entanto, o amor não deixou de existir na colônia. apenas não conseguiu romper com as barreiras do preconceito europeu, que importou para cá a ideia de que o branco era supremo. A lógica da formação dos povos europeus, seus conflitos religiosos e por terra logo seriam reproduzidas aqui, no fim da partilha ibérica das Américas. Dividida por regiões falando idiomas europeus, a nossa terra e seus habitantes originais sofreram.

Porque os europeus não têm amor à Terra. Nunca tiveram. Sempre usaram-na à exaustão. Com os europeus, nós brasileiros (não falarei pelo resto dos latino-americanos) aprendemos a amar pouco e de forma destrutiva. Não amamos a Terra, por isso destruímos a natureza. Não amamos ao próximo, mas gostamos de repetir discursos vazios da religião sangrenta de quem mata e come o próprio deus todo domingo na missa. Não amamos a nós mesmos o suficiente, porque nossa estima não pode superar a necessidade de pertencer a uma economia do uso do corpo para o trabalho. A não ser que sejamos ricos, daí temos acesso a toda e sublime forma de amor e prazer.

O amor europeu e o modo capitalista, que de acordo com Deleuze, produz tudo, reduz o prazer a instantes do nosso dia, para que possamos viver em conflito com a arte, com a diversão, o lazer. Assim o trabalho vence. Aquilo que deveria ser direito, o gozo, a fruição estética, nos é vendido a um preço alto, para que só os mais ricos possam ter o suficiente.

A sina do pobre é amar menos. Por isso que o mundo vai mal. Mas como querer que pessoas que sofrem exploração possam priorizar o amor em todas as suas formas? Fora os heroísmos que vemos no cotidiano, todos mostrados como forma de legitimação do abuso dos poderes capitalistas, amar é difícil, permanecer no amor é um exercício de extrema dificuldade.

Mas ainda assim, o amor é desejado por todos. Mesmo sabendo que é um sentimento baseado em valores produzidos por um sistema burguês de exploração, a gente continua querendo sentir. E não se importa de sofrer um pouco também. Na verdade, mesmo que eu saiba que o sentimento que eu tenho por minha santa mãezinha, de fato, ajuda a manter a coesão da minha família, e permitiu que ela pusesse eu e outros três filhos produtivos no mercado de trabalho, todos nós amamos amá-la. E não de qualquer jeito. Mas de um jeito sacralizado, até. Porque sabemos que o amor que mãe sente é o mais sublime, então o de filho pode ocupar o segundo lugar no ranking.

Mas jamais podemos confundir as formas de amor, porque desde que nosso querido Lévi-Strauss mostrou o marco zero da nossa cultura, a proibição do incesto, é que sabemos que a organização social se trata mesmo de disciplinar o amor.

E nós, LGBTQIAP+ existimos e podemos amar porque resistimos a formas tradicionais de amar ao longo de um século inteiro e estamos aqui, ainda resistindo, sob forte ameaça. Mas continuaremos a amar. O troço é tão forte que tem gente como nós que chama a si e mais um de família e agrega na esfera desse amor burguês gatos, cães e até filhos adotados ou gerados. Vai entender, né?

O amor caminha torto por linhas certas. E por isso é que não se pode pôr limites a nada que venha desse sentimento nobre ou vulgar. Amar é muito fácil, seu surgimento é simples na nossa cabeça, ou coração, ou mesmo intestinos ou pernas bambas. O amor é o pior e o melhor de nós. E não importa se é um sentimento deliberadamente fabricado. Amamos e pronto.

Não nos esqueçamos de amar, não deixemos de amar.

Mas, acima de tudo, façamos de tudo para que todos possam amar, num momento de dor e morte como o que estamos passando. Vamos nos interessar mais por nossa realidade, botar os pês no chão, participar da política e do regime de economia do corpo em que o amor está mais ou menos contido. Amor faz mais sentido com justiça social.

Amor não é deboísmo ou religião. Amor não vem de corações que meditam profundamente e fazem peregrinação à Índia ou Santiago de Compostela. O amor não surge em corações gratos a deuses, anjos e santos, exatamente. Ele surge da justiça social e da possibilidade de ela se manter. Amor é humano, o ser humano precisa estar bem. E para isso, não precisa de guru, de papa, de santo ou de alguém morrer por causa disso.

O amor precisa somente de que seres humanos existam para ele existir. E existam em cooperação e igualdade.

Imagem da capa de Ben Kerckx por Pixabay.

Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos

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