Quando eu me dei por gente, descobri que morava muito perto de uma cidade chamada Goianésia. Goianésa, Goianés, Goianeisa, as pessoas falavam nomes diferentes. Mas quem mandou minha cidade ter um nome tão esquisito? Mistura língua indígena com grego. Credo. Mas as esquisitices não pararam aí. Goianésia é mesmo uma cidade diferente. Eu sempre gostei das ruas largas e espaçosas, mesmo as ruas de terra, onde eu fui morar, onde meus avós maternos moravam, ruas vermelhas, ou de terra branca. Goianésia tinha uma fazenda bem no meio, na verdade, uma chácara, a chácara do Seu Negrinho. Como é que ele resistiu tanto tempo mantendo pastos e gado no meio da cidade? Mais estranho ainda? Como é que ele conseguiu evitar que transformassem a terra dele em lotes e casas?
Um lugar bom, no meio da cidade, todo mundo quereria morar ali. Nunca ouvi falar de uma cidade aqui por perto que tivesse uma fazendinha cercada de cidade por todos os lados. Só vi coisa parecida quando me mudei para Goiânia. Tinha lá o Bar da Fazendinha. Era de alguém que vivia na margem do Rio Meia Ponte, criando gado e tirando leite, a porta da Fazendinha era uma rua do Setor Crimeia Leste, como aqui em Goianésia, uma fazendinha no meio da cidade. Mas quando eu vi já estava acostumado. Goianésia havia me ensinado a entender essas esquisitices, porque é uma cidade esquisita.
Outra coisa que Goianésia tinha era a fama de ser uma cidade violenta. Papai me falava que quando ele era criança o povo matava mesmo, brigava de faca. No Trevo (São Cristóvão), dizem que o povo matava um de manhã, outro à tarde, outro à noite e deixavam um amarrado para o dia seguinte. E que ninguém ligava. Diziam que Goianésia era terra de matadores, de assassinos. De fato, eu estudei com um cara cujo pai havia sido condenado por assassinato encomendado, uma espécie de prova viva desse nosso passado horrível. Mas ainda assim, Goianésia me parecia uma linda cidade. Largas ruas, já disse, árvores, um prédio só, morríamos de rir. Éramos a cidade de um edifício só, e continuamos, de fato, porque a prefeitura não deixa construir prédios maiores.
Goianésia era divertida, no passado. Festas, bailes, praças cheias. Eu não ia. Tinha uma certa timidez, receio de estar no meio das pessoas. Tinha um certo medo da violência que ainda ecoava nos meus ouvidos, tinha minhas esquisitices. Eu sou esquisito, nasci esquisito numa cidade esquisita, mas bonita, com lagoa, praças (de novo, porque são muitas), ruas largas, avenidas, não me canso de dizer que é uma paisagem privilegiada. Ah, tem os morros, a serra ao norte da cidade, o vento seco, o friozinho em junho. Tem a festa da Pecuária… Eu ia pouco também.
Mas um dia, eu resolvi ir-me embora daqui. Foram onze anos longe. Eu gostava muito daqui, mas queria outras coisas, caminhos, queria estudar mais. Foi uma boa ida e uma boa volta. Deixei uma cidade até pacata e calma. Quando voltei, fiquei sabendo uma coisa triste. A violência não tinha sumido, mas tomado outra forma. A cidade teve o mês de janeiro mais violento para as mulheres em todo o Estado de Goiás. É triste saber disso. É triste saber de histórias que se contam, porque são todas dramáticas, dolorosas.
Um dia desses, andando de carro pela rua, em nossa vizinhança. com minha mãe, ela mostra, na Avenida Contorno, uma casa fechada. “Ali”, disse ela, “é que encontraram aquela mulher e o marido…” Pausa dramática. Um crime hediondo. Uma mulher se recusava a ficar com o marido. E depois de muitas brigas e desentendimentos, ela resolve ir embora. Ele implora para ela que fique, ela diz que não. Então ele muda de ideia, ele sairia e ela ficaria na casa.
Parecia algo justo à pobre coitada, que não tinha onde morar, se saísse da própria, casa, me disseram. Ele então disse que iria tomar providências, acalmou-a e saiu dizendo que iria buscar meios de se mudar rápido. Ela ficou em casa, aguardando que ele fizesse algo, e ele fez. Depois de algum tempo, ele retorna. Então ele a agride, tortura, bate muito até que ela morre. Em seguida, ele se mata e os dois corpos ficam dias, semana, trancados dentro da casa. A suspeita de vizinhos e parentes fizeram arrombar a porta e achar os corpos apodrecendo dentro de casa. A polícia veio, levou a ambos e concluiu que ele a matou e em seguida se matou.
Isso é muito comum, não somente em Goianésia, mas essa história me marcou. Que terra é essa em que mulheres não podem viver caso não queiram estar casadas com homens ruins? Parece ser crime querer ser feliz quando se é mulher? De fato, eu experienciei algumas dificuldades aqui. Uma vizinha que agredia crianças e adolescentes, uma pessoa que abusava de meninas, um pai ou mãe que abandonava a criança sozinha porque saía para o trabalho. Denunciar não adiantava, a má vontade das autoridades pode ter uma razão. Nossa cultura de que as coisas que acontecem dentro de uma casa, de uma família não devem ser algo de preocupação de quem está de fora.
“É uma mãe batendo no filho?”, perguntou-me uma voz do outro lado, quando denunciei uma hora inteira de espancamento e escândalos dentro da casa ao lado. “Quando a gente chegar aí, eles protegem a mãe, não falam nada, liga para o Conselho Tutelar”. Irritado, eu desligava. Então, entrei em contato com o Conselho e descobri o quanto era difícil provar o espetáculo de horrores que eu via e ouvia todo dia. Um dia abri o portão e o menino que apanhara passou correndo, bonitinho, faceiro. Quem tem coragem de bater numa criança tão linda? Mas ela é custosa. Toda criança tem que ser. É a hora certa de ser assim, ninguém merece apanhar por ser quem é. Seja mulher, criança ou qualquer um.
Triste isso, a violência continua. E com morte. Principalmente de mulheres. Uma é espancada, outra morta, outra sofre constrangimento do marido e dos filhos para não sair de casa, porque não pode sair de uma relação abusiva. Outra adoece. Durante a pandemia, o estresse dentro dos lares piora, com filhos e esposos desempregados, pressionando as mulheres, criando atrito.
Eu vi isso acontecer aqui, do lado da minha casa, portanto em Goianésia. Aqui tem Delegacia da Mulher, mais fácil de denunciar e conseguir apoio. Mas é triste para a mulher ter de encarar a vida depois da denúncia. É triste para o garoto de dez anos ter de entrar dentro de casa e conviver com uma mãe espancadora. Goianésia é isso, um lugar como todo o país, como todos os lugares que conhecemos, um lugar que tem todo os problemas que os outros lugares têm. Não precisamos achar que se trata de um lugar diferente. Não é. Mas ainda assim eu amo esse lugar. E eu queria vê-lo melhor, mas não sei exatamente o que eu posso fazer para melhorar.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos
Respostas de 4
Bacana teu relato!
Me identifiquei com o texto. Tenho esse sentimento de estranhamento com essa cidade. Nostalgia da infãncia e frustração de adulto.
Interessante, gostaria de conhecê-lo, deixe o contado de suas redes sociais. Abraço!
Vinícius Moraes, é você?