Mudando radicalmente de assunto, às vezes precisamos falar de coisas menos pesadas, principalmente quando a pandemia não mostra sinais de que vai acabar. Na semana em que o país passou das 460 mil mortes e a CPI da COVID-19 escancarou o plano do governo de deixar morrer a população, talvez precisemos tar um tempo para nossos cérebros assimilarem tudo. Por isso, um assunto ameno: daqui uns dias tem pequi na panela do goiano. De fato, tem o ano todo depois que passaram a cultivá-lo ou trazê-lo de outras regiões. Polêmico, forte, amarelo. O ouro de Goiás é bom mesmo?
O QUE É PEQUI
Pequi é uma daquelas coisas da vida com as quais não há meio termo: ou se gosta ou não se gosta. Isso não parece ser um problema, a não ser se a pessoa que não gosta é goiano da gema, como eu sou. Não gostar de pequi, aqui em Goiás, é tido por alguns, como um sério problema. Não gostar de pequi e ser goiano é ser suspeito. As pessoas praticamente duvidam de sua seriedade como pessoa, outros acham loucura, é meio difícil de justificar, às vezes.
Não gostar de pequi em Goiás significa que você não parece goiano, porque aqui, geralmente quem não gosta é de fora. Ou é o mineiro belorizontino, ou o paulista, ambos metidos a urbanos demais para gostar da iguaria. Chegam aqui de bico torcido, tapando o nariz para o cheiro forte, provando com cara ruim ou mesmo fazendo como os afoitos ‘estrangeiros’ desavisados que mordem o caroço cheio de espinhos por dentro.
Nunca entendi o pequi direito. Cheiro forte, cor muito amarela, perigoso. O ouriço do reino Plantæ, esperando os desavisados morderem-lhe os caroços com força. Dizem que o espinho não sai, entra na carne e inflama horrorosamente, mas pelo que eu já fiquei sabendo, basta ir ao médico e ter a paciência para que se extraia os espinhos da bochecha, língua, gengiva e demais. Mas não deixa de ser perigoso ao desavisado, que não sabe como comer. O pequi é muito diferente de todos os outros frutos do cerrado, porque colhemos para comê-lo em casa, depois, cozido em pratos salgados, embora haja quem faça doce do fruto, ou corajosos que roam seus caroços crus. Voltando ao pequi no mato, há que o colher na época certa, na sua estação correta, de setembro a janeiro, dependendo da região.
O DESAFIO DE SE COMER
É um fruto endêmico do cerrado brasileiro, portanto pode ser achado no Ceará, Bahia, Tocantins, Pará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo. Em cada local, o fruto fica maduro numa época específica, de acordo como o regime de chuvas no cerrado. Se a seca está no seu último mês, o pequi começa a dar flores e frutos. Os pequis de Goiás são de caroços pequenos e muito amarelos. Os da região norte são maiores e mais pálidos.
Colhe-se o pequi no chão e nas galhas dos pés que podem ser árvores altas, chamam a atenção no cerrado e nos pastos. Ao se chegar em casa com os frutos no saco, corta-se em duas metades para que se exponham os caroços amarelos, a serem reservados numa vasilha limpa. Dali vão para as panelas ou para outros acondicionamentos. Congela-se muito pequi aqui em Goiás, uma forma de garantir o seu desfrute por todo o ano.
Faz-se conservas em salmouras próprias, retira-se a polpa para pratos refinados e especiais em que os caroços não possam aparecer. Não participo da comilança do pequi, mas olho com certa desconfiança para pratos chiques que não assumem, logo de cara, o pequi. Suflês, consomês, molhos estranhos não combinam com a brutalidade do fruto-símbolo do cerrado e toda a sua carga semântica: forte no cheiro e gosto, perigoso nas bocas desavisadas, marcante, de cor forte.
ONIPRESENÇA DO PEQUI
Tudo no pequi é forte. Cor, gosto e cheiro. Seu gosto [sim, tenho tentado aprender a gostar desse sabor há toda uma vida, eu sei bem como é] não merece ser comparado com coisas ruins inadequadas e pejorativas. É resinoso, amadeirado, forte, levemente adstringente, aciona no nosso paladar uma mescla sensações para o amargo e o azedo, sem que possamos decidir por alguma delas, mas dá uma sensação parecia com aquela que temos quando encostamos a língua em madeira seca ou verde. O cheiro é igualmente resinoso e marcante. Poucos caroços de pequi numa panelinha já dão notícia longe numa rua.
Em alguns dias, andar a pé pela cidade na hora do almoço, aqui em Goiás, é ter a sensação de que todos estão comendo pequi, porque mal cessa o cheiro na frente de uma casa, começa o cheiro na frente de outra. Os índios já o consumiam de diversas formas, mas o que comemos hoje em dia é resultado do encontro desse hábito com a culinária portuguesa que acrescentou aos caroços o sal, temperos, ervas, o arroz, a carne de frango. Para quem não sabe, se é que alguém não sabe disso, a carne do fruto do pequizeiro não é comestível, come-se uma fina camada amarela de polpa em volta das sementes do pequi.
O pequizeiro é uma espécie de castanheira, depois da camada amarela comestível há uma dura casca de noz, que protege uma camada horripilante de espinhos perigosos, que escondem uma castanha no seu núcleo, branca e de sabor que parece em alguma medida, o sabor da polpa do pequi, mas muito forte e adstringente. Da polpa retira-se também óleo, que se acreditava, e hoje é verdade, dita por uma pesquisa da UnB, ter propriedades medicinais. Fonte de energia, por ser oleaginoso, não dá, no entanto, muito impacto nas dietas, pois cinquenta gramas de pequi possuem apenas quarenta quilocalorias.
EU NÃO COMO PEQUI
Sabendo tudo o que eu sei sobre o pequi, ainda tenho coragem de dizer que não aprecio o seu sabor e seu cheiro. Não sei exatamente. É uma ojeriza que não sei explicar direito. Provavelmente veio de minha criação. Minha mãe come de tudo, meu pai quase não come nada, por isso minha mãe não costumava fazer pequi em casa, muito raramente. Nem meu pai, nem minha avó, mãe dele, nem seu pai, meu avô, gostavam de pequi. Com esse exemplo, aprendi desde cedo que comer as coisas era algo facultativo, pois tinha no comportamento dos mais velhos o apoio necessário para não comer o que me mandavam.
Assim, na minha casa, aprendeu comer pequi quem quis, eu fui um dos que não se agradaram do cheiro e gosto e desde pequeno venho dispensando o pequi da minha alimentação. Mas isso não significa que eu tenha orgulho disso. Ao contrário. É um motivo de exclusão, de constrangimentos, de problemas. Tanto que já me esforcei para comer e gostar, mas ainda não logrei êxito nessa empreitada.
PORTANTO, TODOS MENOS EU…
Continuo no meu não-gostar. Mas já fiquei com fome por causa do pequi, já comi obrigado da galinhada com pequi, sem roer os caroços, claro, para não passar fome, já comi sem mistura, já enfrentei a cara de cozinheiras chateadas por não terem conseguido adivinhar um chato no meio do povo, que teve de comer arroz, ovo frito e farinha, arroz branco cozido às pressas porque o arroz tinha pequi, o frango tinha pequi.
Confesso que preferiria ser como todo mundo, mas não entendo direito porque não gosto, porque não me apetece. Mas sigo celebrando o pequi, apesar de não o degustar, ele lembra o rico ouro, é marcante, é, ao seu modo, e para todos que gostam, delicioso. Nessa minha curta vida, encontrei outros goianos como eu, que não toleram pequi, não gostam. Alguns da minha família, outros de fora, alguns desrespeitosos, a xingar as panelas de pequi, a chamá-las de fedidas, repugnantes. Ora, essa feiura não se faz em casa de ninguém por causa de pequi.
O que não gosta deve se lembrar que é uma pequena exceção no meio de todo mundo. Somos minoria. E por ser minoria aprendi a tolerar o cheiro, o sabor, a ubiquidade do pequi de setembro a janeiro, dos pequis temporãos do norte a preço de ouro nas nossas ruas, o ano inteiro, o pequi a litro, contrariando o Inmetro que provavelmente o queria a quilogramas, aprendi a tolerar uma coisa que a maioria gosta, que é uma marca do meu Estado, portanto é meu dever.
Imagem da capa, disponível em: https://www.fruta.com.br/wp-content/uploads/2018/05/shutterstock_365197244.jpg. Publicada no artigo: https://www.fruta.com.br/beneficios-do-pequi/.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos