Antes de iniciar o texto, eu quero deixar claro que não pretendo taxar religiosos de ignorantes. Nem mesmo associar de maneira definitiva o criacionismo à ignorância. Mas tentar entender qual o motivo pelo qual essa crença perdura. Mesmo apesar de estarmos no século vinte e um. Em segundo lugar, quero refletir sobre o peso da cultura religiosa. Aquela que nos foi trazida com a colonização. E é a partir desse ponto que eu quero começar minha reflexão.
Colonialidade e herança
Nossa condição cultural e identidade brasileira dependem muito da herança colonial. A colonização se acabou com a Independência. Viramos um império dependente da Europa, no entanto. Mas esse regime se acabou, por obra de uma elite. A mesma que defendia uma economia semelhante à colonização. A mesma que europeus realizaram no nosso continente. E continuaram na África e Ásia no século XX. Aliás, nesse século é que começamos a desatar os profundos nós da dependência. Contudo, nunca de maneira definitiva. Isso por interesse de nossas elites. Elas herdaram um domínio econômico que perpetua valores coloniais. Percebemos isso quando vemos que as pessoas pobres são cidadãos de segunda classe. Ou menos que isso.
Igrejas, colônia e seara cristã
A educação sempre foi principalmente católica no país, por causa da colonização portuguesa. A criação de um suposto estado laico em 1889 não criou rejeição à religiosidade. O avanço do protestantismo e do pentecostalismo aconteceu. Isso no século passado. Assim, cresce ainda no país formas de fé dos cristãos modernos. Os evangélicos são carismáticos, milagreiros e muito arrojados nas suas estratégias de evangelização. No entanto, pontos comuns da fé entre o catolicismo e os evangélicos permitiram essa penetrabilidade de crenças. Não somente isso, mas a troca de fiéis entre as igrejas. Uns colhendo na seara que outros plantaram.
Fé, criacionismo e ignorância
O mundo em que moramos não foi criado. Ele se formou. Mas há narrativas em todas as crenças e culturas a respeito de uma criação. A narrativa cristã possui um estado invejável de verdade. Ela é capaz de se superar as verdades científicas mais claras. E passa por cima de todas as narrativas existentes. Por exemplo, um cristão criacionista acredita que um mito africano ou indígena de criação seja mentira. Concorda com cientistas que digam isso. Mas quer que seu mito, por estar na Bíblia, seja verdadeiro. Portanto, seu deus criou o mundo em sete dias, botou Adão e Eva num jardim, e coisa e tal.
Na verdade, a educação catequética que faz parte de nossa cultura não permite questionar deus. Mesmo que muitos de nós não sejamos incomodados por limitações da fé. O criacionismo sempre foi privilegiado, porque, quando não é aceito, passa despercebido. A liberdade de pensamento, portanto, nunca foi muito bem vista pelos religiosos. Em vez de entenderem isso como algo positivo, preferiram se sentir atacados em seus privilégios. Entretanto, a ciência ensinada na educação é inócua à religião. Ela visa melhorar a qualidade de vida das pessoas, facilitar a governamentalidade. Antes de tudo, a ciência busca ensinar como viver bem e lidar com o mundo. Isso tudo com consciência ecológica e de si mesmo ou mesma. Esse estado de consciência e certo conhecimento de si é pernicioso à fé de grupos específicos de religiosos.
Criacionismo e ignorância: a microfísica da dominação
A fé se alimenta da ignorância humana. Aliás, ela foi criada como uma alternativa à ignorância. Mas o controle sobre ela se perdeu a partir da possibilidade da utilização da fé como saber-piloto. E isso é algo muito antigo, não dá para saber exatamente como começou. O caráter positivo e motivacional da fé é usado como escudo contra seu potencial. A fé cria verdades, quem puder pagar para usá-las pode se dar bem. Não há motivos concretos para se crer no sagrado a não ser um único. Não há respostas para uma série de nossas indagações. Somos essencialmente ignorantes a respeito de muita coisa.
Essa condição humana não muda muito com a ciência. Quanto mais descobrimos, menos temos respostas definitivas. Talvez porque nosso perguntar esteja culturalmente contaminado com as dúvidas místicas e filosóficas sobre a alma, a morte. Não sabemos de nada com certeza científica. Mas nesse plano, debruça-se a religião com muita desenvoltura. Suas histórias fantásticas explicam tudo, do início ao fim, prometem delícias e dores, afagos e castigos. Para que a adesão a essas crenças seja efetiva, não pode haver concorrência. A ciência é sempre a pior das concorrentes de toda a fé.
Ciência versus fé: uma batalha, campos diferentes
Embora igrejas considerem a ciência uma concorrente, isso não é verdade. Nenhuma ciência pretende explicar as coisas como a fé explica. Na verdade, nem sempre a ciência se importa com o que a fé explica, de maneira direta. A ciência não existe como concorrente da fé. E nem existe como seu juiz. Mas o julgamento das ideias da fé acontece por causa da ciência. Principalmente quando respostas concretas precisam ser dadas. Desse modo, a ciência propõe uma teoria para o surgimento do mundo que se opõe ao criacionismo. Não porque o criacionismo afirma o que diz. Mas porque a ciência descobriu coisas importantes.
“O big bang é só uma teoria. A evolução é só uma teoria”. Mas essas teorias não são exatamente teorias como o criacionismo. Elas têm uma possibilidade muito grande de comprovação. Mesmo que sejam substituídas, não serão por verdades do criacionismo, no futuro. Mas por outras formulações científicas mais exatas ainda. Até que uma tese mais adequada se comprove, não é errado se ensinar essas. Nem isso visa combater a fé. Ciência e fé não militam pela mesma coisa. Mas a fé quer uma coisa que a ciência não quer. Isso é muito claro. A fé precisa do que a ciência destrói: a ignorância.
E na escola? Criacionismo e ignorância acontecem nos templos do saber?
Para garantir o poder colonial, portugueses deixaram a educação a cargo dos religiosos. Mesmo quando a Igreja Católica perdeu a primazia da educação portuguesa, no século XVIII, aqui nada mudou de concreto. Os valores religiosos estimulavam a obediência e regravam a instrução de modo a formar súditos. Livres do estado de colônia, nós brasileiros insistimos nesses valores, quando perguntamos a nós mesmos o que é certo, o que é adequado. Portanto, nada mais natural que a fé continue a ser modelo de conduta. Cristo, santos, personagens da bíblia, todos muito dóceis. Ou arrojados quando a matéria é defender a fé. No currículo de qualquer catecismo está criacionismo e a ignorância, ensinada como virtude cristã. Para obedecer, não pode ser maior que seu criador.
Esse modelo é mais que desejado pelos poderosos. Não vou dizer que a educação de massas no Brasil seja legalmente religiosa. Mas permite, com a existência do Ensino Religioso, a existência da catequese em escolas laicas. Em vez de deixar o ensino dessa disciplina a cientistas da religião, cujo preparo permite um ensino não confessional. Professores católicos ou evangélicos tentam influenciar a formação de seus estudantes por meio de seu universo de crenças. Permitem atos religiosos cristãos nas escolas corriqueiramente. Ensinam cristianismo no Ensino Religioso. Por exemplo, eu já ouvi pessoalmente de professores que o homem veio do macaco e que isso era improvável, porque não há macacos se transformando em homens. Nesse caso, ele estava mal-informado. Mas é muito comum a gravura da evolução dos primatas em que há um macaco num extremo e um ser humano moderno no outro. Sem a correta interpretação, essa imagem leva ao erro.
Cadê a evolução que estava aqui?
Na escola, é comum que a forma como a evolução seja ensinada de maneira suave e inofensiva à religião. Isso acontece por causa dos livros didáticos ou dos professores. Os livros não podem afirmar categoricamente algo contra a religião de maneira direta. E nem precisam. Já os professores, instigados por suas próprias vivências ou pelas vivências de seus estudantes, podem questionar a evolução ou o criacionismo em sala. Pelo que podemos entender, numa leitura prática que eu tenho, por estar em ambiente escolar desde que eu entrei na escola, nada é tão grave. Nenhum criacionista precisa perder o sono. Sua crença está a salvo.
No entanto, pentecostais, adventistas, católicos carismáticos dentre outros grupos religiosos cristãos se aproveitam do governo negacionista e anticientífico da atualidade. Eles querem duplamente o direito de não aprender o evolucionismo nas escolas. Assim como o direito de não ensinar o evolucionismo nas suas escolas religiosas. E como isso não cabe a eles, porque educação é uma prerrogativa dos poderes que nos governam, o criacionismo deve ser respeitado em ambientes religiosos. E deve ser ensinado no catecismo das igrejas, não nas escolas, nas aulas de ciências e biologia. Criacionismo e ignorância são amigos. A ciência sai, eles entram.
Por fim, há criacionismo e ignorância no poder?
O que os religiosos querem é substituir a ciência pelo criacionismo como verdade. Já o evolucionismo, por exemplo, deve ser visto como teoria, acessório e opcional, como se não fosse verdade. De fato o que eles querem é que o olhar científico se afaste da crença. Para isso atacam as ciências sobre o humanidade e todas as suas verdades. Na escola, querem o criacionismo. Nas leis, querem retirar leis que amparam mulheres e crianças. Querem proibir o aborto, criminalizar a homossexualidade. Querem submeter os seres humanos de uma forma que a ciência não mais apoia. Não mais desde do século XIX. O criacionismo não é o fim em si. Ele é apenas uma desculpa para algo maior.
Portanto, cabe a nós permitir isso ou não. Religiosos estão em todo lugar. No Congresso, no Supremo Tribunal Federal. O ex-presidente Lula se declarou católico e recebeu apoio da Sé. Bolsonaro, anos depois, declarou-se evangélico. Quis colocar alguém terrivelmente evangélico na Suprema Corte, e de fato fez isso nomeando um pastor evangélico tradicionalista como Ministro da Educação.
Se fosse alguém que trabalhasse, de fato, teríamos uma revolução cristã, criacionista na educação em curso, batalhas judiciais e um Congresso Nacional dividido. Deputados poderiam ter de escolher entre Cristo e a Ciência numa nova Lei de Diretrizes e Bases. No entanto, antes que o “Conto da Aia” comece, vamos pensar. Por que religiosos querem que o criacionismo seja respeitado e ensinado em pé de igualdade com a ciência nos livros e aulas, em todas as escolas? O que vão ganhar com isso? Por que a tolerância cultural e a boa vontade dos professores fiéis não é mais o suficiente? O que eles querem?
A ideia é começarmos a perguntar. Se eu responder, você não vai descobrir da melhor forma.