No último texto, eu falei sobre o poder de uma maneira geral. Trata-se algo que se exerce em relações múltiplas e microscópicas. Toda a vivência social é cheia de relações de poder. A conclusão é que o poder não manda em nós. Não está em nós. Ou em alguém. Mas o poder está entre nós em nossas formas múltiplas de viver em sociedade. Outra coisa interessante que falamos é que o poder não está nas instituições, ao contrário, as instituições se apoiam nas muitas formas de poder para exercer seu papel.
Por fim, é importante que saibamos que o poder é algo positivo. Isso significa que o poder funciona mais eficientemente por meio da permissão. Permitir, produzir, vida, dar condições de que coisas aconteçam são características mais produtivas do poder. Há o poder negativo, que sanciona, interdita ou reprime. Mas nesses casos, há uma necessidade de se justificar positivamente isso tudo. Portanto, as características negativas do poder acabam por ser menos eficientes.
Positividade
Os poderes nos convencem a fazer coisas que nos tornam mais saudáveis, produtivos e preparados para a vida em sociedade. Eles que nos convencem a nos prevenir e não apenas a remediar problemas de saúde. Os poderes que cuidam da vida é que tentam organizar o consumo em prol da manutenção dos corpos humanos. Esses corpos produzem e trabalham de maneira hierarquizada com maior ou menor uso da força física. Os poderes que cuidam da vida precisam convencer os trabalhadores a se alimentar corretamente, dormir adequadamente, manter hábitos de lazer e descanso que permitam manter um padrão de produtividade.
De fato, o convencimento não é unânime. As pessoas desobedecem a essas ordens, exatamente porque não há obrigatoriedade em obedecê-las. Há consequências a curto, médio e longo prazo. Há outros poderes em curso e instituições que tentam coordená-los. Dessa forma, há um saldo positivo que se reflete na erradicação de uma doença, na mudança de padrões de consumo ou mesmo nas taxas de natalidade. No século passado vimos tudo isso acontecendo ao longo de décadas de aparente progresso e desenvolvimento da humanidade: uma série de poderes sobre a vida nos fazendo crescer e enfrentar os desafios da existência como organismos num meio biológico.
O poder está entre nós, a verdade está sobre todos
Os discursos em torno da saúde podem nos dar uma ideia de como uma série de poderes se coordenam. Por exemplo, quando pensamos em praticar esportes por um motivo de saúde, encontramos várias possibilidades. Podemos fazer isso de modo simples, de modos mais complexos. Consumindo mais ou menos recursos financeiros. Com mais ou menos qualidade. Percebemos que, juntamente com o discurso do cuidado com a saúde há outros tentando convencer o sujeito comprar, mas o essencial é que uma sensação de estar fazendo o correto aparece a cada momento. A realidade de que exercícios físicos fazem bem à saúde parece estar na conversa até mesmo dos mais sedentários.
Essa sensação de que você está certo quando faz o que é necessário para se manter vivo, assim como a sensação de erro quando faz o contrário vem daquilo que suporta a existência do poder. Isso não é a força de uma instituição, não é o diploma do médico. Nem a ciência que o forma. Mas A VERDADE. A verdade é um discurso que é aceito como válido por causa de relações de poder em um determinado tempo histórico. (Nesse link, há inclusive o aspecto jurídico do poder que eu não desenvolvo nesse texto).
A verdade não é única e estanque no tempo. Ela depende do suporte do poder. Ao mesmo tempo em que o poder precisa da verdade para se exercer. Como é que médicos, governo e empresários convenceriam as pessoas de que práticas esportivas são o melhor para a saúde sem a verdade? E quem detém essa verdade? Um saber, uma ciência, um código de leis, uma tradição cultural. São várias as fontes de verdade. Mas o poder se exercerá pela verdade que o fizer mais produtivo.
Poder, verdade e discriminação
Já que os poderes querem a vida organizada das populações, porque eles não obrigam? Porque a adesão seria menor. De fato, a Revolta da Vacina de 1904 é a prova de que nem as Forças Armadas, a polícia obrigou a população do Rio de Janeiro a se imunizar contra a varíola. O poder não funciona em sua forma negativa com uma população de corpos. Ele funciona pelo convencimento.
Escola: o poder está entre nós e nossas crianças
Isso significa ensinar Ciências para as crianças na escola, para que, quando adultos, elas possam entender a necessidade de vacinar seus filhos. E claro, isso falha, acerta, falha. Em sociedades democráticas modernas, a verdade baseada na razão científica tende a não funcionar tanto quando o adequado. Focos de resistência ao poder que produz a vida surgem em movimentos antivacinais, antimedicina, em fundamentalismos religiosos entre outros.
Talvez o motivo disso tudo esteja dado no tratamento dado á verdade pelos poderes em nossas nações democráticas ou não nas Américas. A escola, importante dispositivo de verdade ou aparelho ideológico de Estado, como queria Althusser, ensina verdades científicas em versões “apropriadas” para as crianças que são inócuas às tradições religiosas, notoriamente ao cristianismo.
Ciência e meias verdades
Na verdade, as “Ciências” ensinadas na escola não questionam os valores religiosos, sendo colocadas por livros didáticos e, principalmente, por professores, como alternativa ou versão mais moderna das crenças religiosas da catequese. Na minha vida escolar, eu já vi e ouvi professor dizer que o Big Bang era, de fato, o primeiro dia da criação. Assim como eu ouvi que a narrativa do Gênesis bíblico a respeito da criação do mundo e da vida, correspondem, de fato, às etapas da paleohistória terrestre.
Dessa forma, quando se chega ao estudo do corpo humano e da sexualidade, a antropologia bíblica, a divisão binária de gênero e sexo passam incólumes. Não há aprendizagem sobre diversidade de corpos, sexos, não há estudos, nem em textos suplementares, sobre sexo e sexualidade como a ciência de fato descobriu, nem nos animais, nem no ser humano. Há uma ideia de que é natural ter corpos e sexos binários. Essa verdade é útil aos poderes que promovem a vida. É útil a um poder que estimula, ainda a reprodução, mesmo que planejada e controlada. A ideia de que poderes precisam criar corpos ÚTEIS e DÓCEIS para o sucesso da população mostra claramente que a discriminação a corpos de LGBTQIAP+ não é só de origem religiosa.
Entrando na esfera do poder
Não somos úteis porque não nos reproduzimos. Ou pelo menos não da forma mais útil e mais adequada, nunca da forma mais barata e massificada. Gays, lésbicas, pessoas trans e outros parecem ser um entrave a isso: viver para perpetuar a vida no planeta. Esse preconceito é advindo de uma concepção sobre vida que mistura elementos religiosos judaico-cristãos, revestidos de uma lógica cartesiana que tenta explicar o ser humano como um ser transcendente, dotado de alma e com uma missão na Terra. E qual a minha missão, quando eu desperdiço meus gametas num corpo que não vai se fecundar por eles?
Por isso, parte da luta LGBTQIAP+ por aceitação consiste em querer para si o que é oferecido aos outros. Casamento, igualdade, família, direito à reprodução. No fundo, muitos de nós querem ser submissos ao poder que controla a vida da maioria e a torna produtiva. Isso porque a verdade que move esses discursos diz que casar e ter família, ter emprego e ser aceito também é ser saudável. Boa parte da luta contra a exclusão de LGBTQIAP+ vem disso. De se retirar esses sujeitos da esfera da anormalidade. Ou seja, muitos desejam ser normais, mesmo sem pensar nisso.
O poder está entre nós: ser aceito, não normal
Você deseja ser normal? Eu me sinto exatamente como quando assisti ao filme dos X-Men, o segundo, creio. Havia uma “cura mutante” que os tornava “normais” e não restava mais nada a eles a não serem vítimas indefesas de perigos extremos. Não corremos tantos perigos. Mas queremos ser normais, casados, aceitos pelo Papa (que não vai nos aceitar), por igrejas inclusivas, vamos nos dobrar ao mercado de trabalho (e não ele a nós) para quê? Para perdemos o que há de especial em nós?
Pensemos. Precisamos de ser aceitos. Não de sermos submetidos a uma normalidade que não nos serve.
Por Alex Mendes
para sua coluna O Poder Que Queremos