No dia 1 de dezembro, celebramos o Dia Mundial de Combate à AIDS e, ao longo deste mês, inúmeras iniciativas e ações marcarão a passagem de mais um Dezembro Vermelho, campanha destinada a promover a prevenção e a conscientização em torno da doença.
Quando a disseminação do HIV, vírus causador da AIDS, começou a tomar proporções epidêmicas e chegou ao Brasil, eu estava iniciando minha vida sexual. Quando tive minhas primeiras relações com outros homens, a partir de meados de 1982, a AIDS já existia entre nós e começava a se espalhar, mas ainda se falava pouco dela. Em algum momento nessa época, uma reportagem bem sensacionalista do Fantástico contribuiu para tornar o assunto mais conhecido. Essa e outras notícias sobre a AIDS desempenharam um papel fundamental na construção do imaginário público sobre a doença, associando-a à homossexualidade e a uma morte rápida porém muito sofrida. Ainda me lembro das primeiras imagens assustadoras que vi de pacientes com AIDS e de seus corpos que definhavam. Aos poucos, soubemos de pessoas conhecidas que foram infectadas com o HIV e desenvolveram a doença, morrendo num prazo muito curto. Para mim, um homem gay que mal começava a explorar as múltiplas possibilidades do prazer sexual, a mensagem era clara: esse pode ser o seu futuro.
Tive a sorte de ter tido um tio que era gay, médico e que, nessa época, especializou-se no tratamento e na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Ele chegou a ter um consultório voltado para homens gays em São Paulo. Por uma triste ironia, ele próprio foi infectado alguns anos depois. Felizmente, quando isso aconteceu, as possibilidades de tratamento já estavam muito mais avançadas e ele pode ainda viver muitos anos, até que, esse ano, faleceu pouco antes de completar 70 anos, em função de uma série de complicações.
De qualquer forma, mesmo tendo tido acesso às informações sobre o vírus e suas formas de transmissão e de prevenção, durante muito tempo eu continuei acreditando na imagem inicial que se criou em torno da AIDS. Estar contaminado com o HIV era uma sentença de morte. Era o portão de entrada para um universo infernal e doloroso do qual eu queria distância. Consciente ou inconscientemente, meu medo da doença acabava transferindo-se de algum modo para os doentes.
Isso começou a mudar no final da década de 80. Um marco desse processo foi certamente o lançamento do álbum Ideologia, do Cazuza, em 1988. Se bem me lembro, foi durante a campanha de lançamento do disco que a condição de portador do HIV do Cazuza foi publicamente conhecida. Fui ver duas vezes o show de lançamento no Canecão, uma delas com o meu tio. Lembro também claramente de uma entrevista na época da estreia do show, na qual o Cazuza dizia que a palavra mais cantada em todo o espetáculo era “vida” (o show começava com “Vida Louca Vida”, que era emendada com “Boas Novas” (“eu vi a cara da morte e ela estava viva”, diz a letra) e em seguida vinha “Ideologia” (“eu quero uma pra viver”).
Mais ou menos na mesma época, li no jornal que o Herbert Daniel também estava infectado com o HIV. Creio que era uma entrevista ou um artigo escrito por ele. O Herbert Daniel tinha sido um dos últimos exilados políticos da ditadura militar a voltar para o Brasil depois da abertura (salvo engano, havia um personagem cômico do Jô Soares – o último exilado em Paris, aquele que dizia “você não quer que eu volte…” – que era inspirado nele). Eu tinha uma admiração especial pelo Herbert pelo fato dele ser gay e falar abertamente dos problemas que enfrentou por ser homossexual e militante de uma esquerda que, naquele tempo (e, em certos segmentos, ainda hoje), era predominantemente conservadora no plano da sexualidade. E aquele era um tema que me interessava de perto. Eu sempre tinha achado a postura do Herbert Daniel corajosa e instigante. Por isso, li com muita curiosidade o que ele tinha a dizer a sobre a AIDS.
O recado do Herbert Daniel era simples e direto, e pode ser resumido no título do livro que ele publicou em seguida: “Vida antes da morte” (o livro foi reeditado há dois anos e pode ser baixado pela Internet. Veja o link no final do artigo). O que ele queria dizer com isso era que, uma vez diagnosticados, os pacientes portadores de HIV ingressavam numa estranha condição na qual, embora (ainda) clinicamente vivos, já eram considerados socialmente mortos, já que esse era o seu destino inelutável. Uma espécie de antecâmara da morte. E o Herbert recusava veementemente essa condição:
“Quando morrer, que a morte me seja leve, mas não me vou deixar matar pelos preconceitos. Estes matam em vida, de morte civil, a pior morte. Querem matar os doentes de AIDS, condenando-os à morte civil. Por isto, desobedientemente, procuro reafirmar que estou vivíssimo. Meu problema, como o de milhares de outros doentes, não é reclamar mais fáceis condições de morte, mas reivindicar melhores condições de vida.”
Mais de 20 anos depois, será que isso mudou? Com certeza, as terapias avançaram e, hoje, é possível conviver com o HIV sem desenvolver a AIDS. Muitos foram os progressos, hoje gravemente ameaçados, nas políticas de prevenção, acompanhamento e tratamento da doença. Mas a palavra AIDS continua rodeada de preconceitos e os portadores de HIV marcados pelo estigma da doença.
Na semana passada, li a bela coluna que o Jean Dantas escreveu sobre o Dia Mundial de Combate à AIDS e lembrei-me do Herbert Daniel. Vi o belíssimo filme “Carta para além dos muros”, do André Canto, no qual o Herbert aparece brevemente. E decidi falar sobre ele e sobre o Cazuza. Mais do que falar sobre eles, celebrar sua memória. A AIDS ceifou muitas vidas como as deles, vidas que ainda estavam desabrochando e que foram interrompidas. Pessoas que poderiam estar aqui hoje, partilhando diretamente conosco suas experiências e talvez sua sabedoria. Pessoas que, enquanto viveram, lutaram pela vida.
Eu hoje sou mais velho do que o Cazuza e o Herbert Daniel quando morreram, um aos 32 anos, o outro aos 45. Mas não tenho nenhuma hesitação em considerá-los de certa forma meus ancestrais. Figuras de uma ancestralidade que não se constrói com base na hereditariedade, mas na lenta acumulação de experiências comuns que formam uma sensibilidade e um jeito de ver e estar no mundo. Experiências forjadas muitas vezes, é certo, sob o impacto da discriminação, do estigma, do preconceito. Mas que, mesmo diante da morte, souberam se afirmar como celebração da vida. Vida antes da morte, e também vida além da morte, já que continuada por nós, herdeiros do seu legado. Até que nos tornemos também ancestrais dos que virão, dos que já estão aí. Vivos.
Até a próxima!
PS – Se alguém tiver interesse de ler o livro (bem curto) do Herbert Daniel, esse é o link:
As músicas de hoje homenageiam Cazuza. A primeira é “Boas novas”, do maravilhoso álbum Ideologia. E a segunda é “O poeta está vivo”, linda canção do Barão Vermelho dedicada a Cazuza.
Por Paulo André Lima para sua coluna
Bons momentos e quem sabe algo mais
Uma resposta
Paulo meu amigo, boas lembranças que trazes no seu texto. Hebert Daniel, e o.seu conceito de morte civil foi um das primeiras provocações em solo brasileiro em nome da vida, pois as pessoas são muito mais que um vírus. Infelizmente ainda a imagem das pessoas mais vulneráveis ao HIV/AIDS presente mentes de médicos são os gays, usuários de drogas e profissionais do sexo. Ainda temos muito que enfrentar no campo da discriminação, preconceito e estigma. Um belo texto, meu amigo.