Às oito e meia da manhã, iniciou-se a audiência.
— Bom dia, senhoras e senhores. Iniciamos agora esta audiência de instrução e julgamento. – Pronunciou-se o juiz, limpando a careca suada com um lenço. – Senhorita Alana Martins, está sendo acusada pela sua família pelo crime de Homossexualidade Oculta, prevista no parágrafo 6º da Constituição Parental, enquadrada como omissão de sexualidade. Tem conhecimento desta acusação?
— Sim, eu tenho conhecimento sobre estes… rumores.
— E então? – Questionou.
— E então o quê? – Indagou ela, nervosa.
— Qual a veracidade dos fatos, senhorita Martins?
— Bem, eu não sei. Talvez?
— Esta é uma resposta… incomum. Como espera ser inocentada deste jeito?
— Eu não sei. – Insistiu ela, suspirando. Não esperava ter que passar por aquele julgamento, muito menos ser obrigada a se questionar sobre sua própria sexualidade.
— Diga-me, seu primeiro namoro foi com alguém do sexo masculino ou feminino? – Voltou a perguntar o juiz, já demonstrando sinais de impaciência.
— Eu nunca namorei.
— Namorico de infância? Primeiro beijo? Pode ser selinho.
— Nem beijo na bochecha, Excelência.
— Certo, estou satisfeito com o interrogatório. Vamos ouvir as testemunhas. Chamaremos agora a testemunha de defesa, Pedro Guttemberg, amigo da ré.
Segundos depois, um jovem de aparência hipster entra na sala, ocupando seu lugar na cadeira ao lado. Após os trâmites iniciais, ele começou.
— Vossa Excelência que me desculpe, mas essas acusações são ridículas! Pelo amor de Deus, olhem bem para a fuça dessa garota. Ela não daria em cima de uma garota nem se a garota se jogasse em cima dela. Além disso, nós passamos horas babando no peitoral dos irmãos Hemsworth e ela suspira a cada vez que Jacob e Edward brigam pela Bella em “Crepúsculo”.
— Tem certeza de que ela não suspira por conta da Bella? – Questionou o juiz.
— Absoluta, Excelência. Amiga, você vai ter que me desculpar, mas gente: ela tem uma fronha com a cara do Jacob estampada.
— Os senhores têm alguma pergunta? – Perguntou o magistrado ao promotor e ao advogado de defesa. Para a infelicidade do outro, o promotor se pronunciou.
— O senhor mencionou em seu testemunho que Alana possui certo apreço pelos mocinhos de Crepúsculo, certo? No entanto, há outros personagens. Seria certo supor que este apreço se estende à personagem Alice Cullen?
—Bem… – Gaguejou ele, visivelmente surpreso pela pergunta. A ré ergueu as sobrancelhas em choque. Aquilo era golpe baixo, isso nem ela poderia negar, e ele sabia disso.
— Foi o que pensei. Sem mais perguntas, Excelência.
— Pode ir, senhor Pedro. Vejamos o que a próxima testemunha tem a dizer. Chamo agora a testemunha de acusação, Marli Toledo, tia da ré.
Uma senhora de olhos nervosos e cabelos longos entrou e sentou-se, passando pelo mesmo processo de seu antecessor antes de testemunhar.
— Bom, mês passado, no aniversário da Ilda, minha irmã, reunimos a família e os amigos em uma chácara. Logo depois da Alana ter dispensado o Jorginho, o bonitinho filho da Carmem, vimos ela praticamente agarrando a amiga na piscina. Depois, minha filha me disse que uma tal cantora chamada Girl in Red estava presente em peso em uma playlist do celular dela, além de uma música chamada “I Kissed a Girl” da Katy Perry. Sabia que a tradução é, literalmente, “eu beijei uma garota”?
—Certo. Perguntas, senhores?
O advogado de defesa pronunciou-se desta vez.
— Senhora Toledo, quais as chances de Alana apenas ter impedido um afogamento? E há alguma chance de Alana e Jorge já terem se conhecido antes?
— Bem, eu não tenho certeza…
— Tudo bem. Quanto as músicas, é possível que seja uma playlist de músicas populares no momento?
— É possível. Mas haviam também diversas músicas antigas, principalmente dos Mamonas Assassinas. “Renato, o Gaúcho”, “Robocop Gay”…
— Senhora, eu sou casado há vinte e seis anos com uma mulher e sou grande fã dos Mamonas. Músicas não significam nada. É o suficiente, pode sair. – Dispensou o juiz. – Daremos prosseguimento agora com a acusação.
O promotor aprumou-se na cadeira e iniciou seu discurso.
— A Promotoria de Justiça recebeu a acusação de que a ré, Alana Martins, de 19 anos, nunca apresentou um namorado sequer para a família e frequenta passeatas prol LGBTQI+. Como abordado pela testemunha Marli Toleto anteriormente, não demonstrou o menor sinal de interesse pelo sobrinho-colírio da amiga da tia Ilda que a mesma lhe apresentou em seu aniversário de 43 anos no mês passado, além de possuir músicas de cunho homossexual no celular. Também é consumidora assídua de café puro e usa constantemente anéis de coco e camisas estampadas como adereços de moda, porém nega ser lésbica quando questionada pelos parentes. Essa é uma clara violação do Código Parental, e peço para que a ré seja condenada. Nada mais, Excelência!
— Ouçamos o que a defesa tem a dizer.
— Vossa Excelência, as acusações contra minha cliente são inconsistentes, baseadas em conjecturas feitas a partir de observações rasas. Como levantado pela testemunha Pedro Guttemberg, a ré demonstra grande apreço por homens viris e estruturas musculares masculinas bem definidas. Quanto ao incidente na chácara, já fora comprovado por outras testemunhas no local e pela própria amiga que a ré estava tentando ajudá-la, pois Jorge a havia empurrado na piscina em um ato imaturo e infantil (aliás, motivo pelo qual Alana o dispensou, pois o conhecia da época da escola) e esta não sabia nadar. Nunca houve sequer flagrante, uma vez que a ré não costuma sair com frequência. Além disso, frequenta aulas de balé desde os seis anos de idade, sua cor favorita é rosa, seus cadernos são todos decorados com lettering em tons pastéis e é fã de Garotas Malvadas. Ah, ela também joga vôlei aos sábados.
O juiz tirou os óculos e pensou um pouco. Estava diante de um caso complicado e contraditório. Haviam provas de ambos os lados. O jeito seria tirar a prova real e firmar as suas convicções sobre o caso.
— Senhorita Alana, responda com sinceridade: imagine que você tivesse de escolher um sorvete entre dois, e os sabores destes sorvetes fossem alusivos à, digamos, Gal Gadot e Michael B. Jordan, respectivamente. Qual dos dois sabores você escolheria?
Alana parou para pensar. Sentia-se confusa, mas não entendia ao certo o porquê. Por fim, foi incapaz de escolher um só.
— Eu não sei! Não pode ser os dois?
— Foi o que pensei. Bom, desta forma, julgo totalmente improcedente a presente acusação criminal, por não terem sido apuradas provas suficientes contra a ré. Bissexual até que se prove o contrário!
Por Lívia Ferreira
para sua coluna Magia Nossa de Cada Dia