Estou lendo um livro fascinante: “Guapa”, de Saleem Haddad. É o primeiro e premiado romance desse autor nascido no Kuwait, filho de um libano-palestino e uma iraquiana, que atualmente mora entre Lisboa, Londres e Beirute. Em novembro, ele vai dar um curso aqui em Lisboa sobre literatura queer global para o qual eu já estou inscrito, e decidi ler o seu livro para conhecê-lo um pouco melhor. No ano passado, ele também lançou um curta-metragem, “Marco”, que foi muito elogiado e está disponível no YouTube.
“Guapa” conta a história de um jovem gay, Rasa, num país imaginário do Oriente Médio, nos meses que se seguiram à Primavera Árabe, no início dos anos 2010. O romance toca em temas muito interessantes, como o modo pelo qual as revoltas e rebeliões podem ser rapidamente instrumentalizadas e a esperança transformar-se em desencanto ou radicalismo, a vida das pessoas LGBTQIA+ em países conservadores e a relação complexa e ambígua entre o Ocidente e o resto do mundo, tendo como pano de fundo a herança e os resquícios do colonialismo.
O nome do livro refere-se ao bar e boate frequentado pela comunidade LGBTQIA+ da cidade onde se passa a ação, capital do tal país fictício. Há dois Guapas: um é um bar convencional. Mas, depois de uma certa hora da noite, o movimento transfere-se para o subsolo desse primeiro bar, um espaço semiclandestino com música, dança, bebida, shows de drag queens e muita paquera. Há um trecho incrível do primeiro capítulo do livro no qual Saleem Haddad descreve uma noite regular no Guapa. Em poucas páginas, o autor consegue montar um painel da comunidade gay da cidade, de suas diferentes tribos e de suas dinâmicas. É um retrato ao mesmo tempo familiar e singular.
Essas páginas lembraram-me dois outros livros. O primeiro deles é “O Quarto de Giovanni”, de James Baldwin, que contém também uma maravilhosa descrição de um bar gay, no qual o narrador, David, encontra Giovanni pela primeira vez. É meu pedaço favorito do livro, pelas mesmas razões que me atraíram no livro de Saleem Haddad. O outro é um livro póstumo do Roland Barthes, “Incidentes”, que reúne alguns textos curtos e mais pessoais do autor. O que mais me tocou foi “Essa noite no Palace”, onde ele descreve suas impressões de uma famosa boate parisiense.
Comecei então a pensar em outros bares e boates que frequentei ao longo da minha vida: a Off, em São Paulo, onde dei o meu primeiro beijo em outro homem; a Papagaio, ou “Papagay”, como era conhecida na época, a Cueva e o Cabaré Casanova, no Rio; o Bear´s Den, em Paris; o Titan e o Green Lantern, em Washington; o Beirute da Asa Sul, em Brasília; o Tr3s, aqui em Lisboa. Todos lugares onde vivi ótimos momentos e dos quais tenho grandes recordações.
Mas não é só isso. Esses locais têm certamente uma importância imensa na minha memória afetiva. Mas, lendo o livro do Saleem Haddad e associando-o às minhas próprias lembranças, tornou-se muito claro para mim como esses espaços – bares e boates – cumpriram (e creio que ainda cumprem) um papel essencial no meu processo de socialização e mesmo de construção da minha subjetividade como homem gay. E estou seguro de que não sou o único.
Convido os gays que estão lendo essa coluna a fechar os olhos por um minuto e tentar lembrar da primeira vez que entraram num bar ou numa boate gay. Não sei como foi para vocês, mas para mim foi uma experiência transformadora descobrir um espaço onde eu não precisava fingir ou omitir a minha orientação sexual e afetiva. Eu era um mais um gay entre outros gays. E perceber isso era muito reconfortante.
É bem verdade que, depois desse encanto inicial, surgia toda uma outra série de questões. Seria bem acolhido? Conseguiria me enquadrar e me integrar nessa tribo? Encontraria pessoas que me achassem interessante o suficiente para me admitirem no seu círculo de amigos? Entrar no bar foi apenas o primeiro passo de um longo e muitas vezes difícil e doloroso processo de incorporação a esse ente meio abstrato que chamamos de “comunidade gay”. Mas, ainda assim, foi maravilhoso, e é uma sensação que frequentemente se renova quando entro pela primeira vez num lugar novo. São as pessoas, é a música, é o próprio ambiente, é a atmosfera de paquera, é tudo junto e misturado. Para mim, é sempre um espaço de liberdade, prazer e acolhimento.
Quando eu fui pela primeira vez numa boate gay, a Off, em São Paulo, eu não estava sozinho. Quem me levou lá foi meu tio e um amigo seu, com quem eu acabei trocando meu primeiro beijo. Depois que eu voltei ao Rio, comecei a frequentar a Papagaio às sextas-feiras. Na época, eu não tinha amigos gays, ou pelo menos não que soubesse, e costumava ir sozinho. Passei muitas noites dançando comigo mesmo, em alguns momentos totalmente absorto no ritmo da música, em outros observando tudo e todos à minha volta, desejando alguns, evitando outros. Lentamente, fui ampliando meu círculo de amizades gays e conhecendo outros lugares, nos quais encontrei aos poucos a minha própria tribo dentro da grande comunidade, como o Casanova e a Cueva. Até que, quase 20 anos mais tarde e já com a ajuda da Internet, descobri o subgrupo dos “ursos”, com seus próprios locais de encontro. Ainda hoje, é a constelação da qual me sinto mais próximo, muito embora eu venha tentando evitar cada vez mais me tornar prisioneiro de qualquer identidade rígida.
O escritor e sociólogo francês Didier Eribon escreveu um livro que considero muito importante, chamado “Reflexões sobre a questão gay”. De acordo com Eribon, a identidade gay começa a ser definida de fora para dentro, pela estigmatização do desejo homossexual, fenômeno que ele chama de “injúria” (é preciso naturalmente diferenciar a identidade, construída socialmente, e o desejo, que só se torna determinante na elaboração da identidade e da subjetividade em circunstâncias históricas determinadas). No livro, há um capítulo belíssimo sobre a atração que as grandes cidades exercem sobre os homossexuais, pois nelas eles podem encontrar espaços onde seu desejo pode se expressar mais livremente. Os bares e as boates ocupam certamente um lugar central nesse ambiente urbano por oferecer oportunidades de socialização e quiçá de ressignificação do que significa ser gay. Não nos esqueçamos que a revolta de Stonewall teve início em um bar e foi, de certa forma, pelo menos inicialmente, uma luta em defesa daquele espaço e da sua ocupação pelos membros da comunidade LGBTQIA+.
Atualmente, a Internet, suas redes sociais e os aplicativos de encontros proporcionam outras oportunidades de comunicação e de socialização. Não creio, no entanto, que elas substituam a experiência dos bares e das boates, especialmente enquanto espaços de construção de comunidades e subjetividades. Nesses lugares, observando, interagindo e me divertindo, aprendi a ser gay, explorei as muitas formas de ser gay e descobri que tipo de gay eu quero ser. E continuo aprendendo, explorando e descobrindo.
Nesses tempos de confinamento e de distanciamento social, uma das coisas de que sinto mais falta é de ir ao Tr3s e de ficar aglomerado tentando comprar uma cerveja no balcão, conversando com os amigos na calçada e admirando o povo entrar, sair, se divertir. São o meu povo, como os frequentadores do Guapa são o povo do Rasa. E somos todos o mesmo povo.
Até a próxima!
PS – Selecionei duas músicas bastante especiais para mim para ilustrar a coluna de hoje. Dancei muito ao som de “Borderline”, com a Madonna, nas minhas noites ainda solitárias da Papagay. E, como falei em espaços de liberdade e socialização, escolhi também “Cabaret”, com a Liza Minelli, do filme clássico de Bob Fosse, que retrata a Berlim durante a ascensão do nazismo e a lenta asfixia dos espaços de liberdade que lá existiam.
Para quem quiser saber mais sobre o Saleem Haddad, o endereço do seu site é www.saleemhaddad.com e seu Twitter é @sysh .
O curta-metragem “Marco” pode ser visto em
Por Paulo André Lima para sua coluna
Bons momentos e quem sabe algo mais